Migração para o mercado livre e benefícios a segmentos como a geração distribuída ameaçam a capacidade de pagamento.
A soma dos subsídios pagos na fatura de energia elétrica dobrou em cinco anos no Brasil. Entre 2018 e 2023, o valor acumulado por ano saltou de R$ 18,8 bilhões para R$ 37,4 bilhões. Os números são do “subsidiômetro”, ferramenta de cálculo disponibilizada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O crescimento dos subsídios, a maioria como encargo da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), já despertava preocupações entre especialistas do setor.
Agora, começam a surgir alertas sobre o risco do sistema de pagamento entrar em colapso. Um dos principais encargos setoriais, destinado a financiar descontos nas contas de luz, a CDE cobre, por exemplo, a tarifa social, programas de universalização e aquisição de óleo diesel ou óleo combustível para usinas sem conexão com a rede elétrica nacional. Em 2023, o orçamento da CDE aprovado pela Aneel foi de R$ 34,99 bilhões. Ainda não há previsão sobre quando será aprovado o orçamento para este ano, mas há um valor indicado de R$ 37,17 bilhões.
Os altos subsídios têm colocado à prova a capacidade do mercado cativo — segmento tradicional de consumo constituído pelas distribuidoras — de honrar compromissos financeiros. “O problema é que, se não forem tomadas providências amplas agora, vamos ter uma megacrise até 2026 ou 2027”, ressalta Luiz Eduardo Barata, presidente da Frente Nacional de Defesa dos Consumidores de Energia.
Em 2023, o maior valor de subsídio foi para aliviar o custo da operação de térmicas para consumidores dos sistemas isolados (R$ 10,3 bilhões), seguido de gastos com benefícios para fontes incentivadas (R$ 10 bilhões), geração distribuída (R$ 7,1 bilhões) e descontos para baixa renda no programa Tarifa Social (R$ 5,2 bilhões).
Os alertas feitos consideram o desequilíbrio na partilha do gasto dentro do setor e a ausência de justificativa plausível para manter alguns benefícios. Boa parte dos efeitos negativos é atribuída às regras desatualizadas, diante das transformações mais recentes no mercado, e às decisões de caráter técnico tomadas pelo Congresso.
Os mesmos especialistas convergem na opinião de que a situação pode se agravar se houver a criação de novos subsídios. No fim do ano, propostas de ampliar o alcance e duração dos estímulos econômicos para grupos do setor, com ônus adicional de quase R$ 30 bilhões por ano na conta de luz, foram incluídas no projeto do marco legal da geração eólica o offshore.
Barata, que foi diretor-geral do ONS e presidente da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), chama atenção para o movimento de fuga de consumidores dos contratos com distribuidoras para comercializadoras de energia, no mercado livre — que permite a escolha do fornecedor. Essa mudança, graças às brechas da legislação, libera o consumidor do pagamento de encargos assumidos no mercado cativo, alguns usados para garantir a qualidade do próprio suprimento.
Em 2024, explica Barata, “praticamente todos podem ser livres”, exceto consumidores residenciais. Para ele, se a crise for confirmada, o governo não vai resolver os problemas apenas com medidas localizadas, como foi a resposta ao racionamento de 2001. Lá, foram feitos ajustes no planejamento do setor para atrair investimentos que pudessem reforçar a interligação das regiões e ampliar a contratação de térmicas, medidas necessárias para garantir a segurança do abastecimento.
Em 2023, apesar de o Congresso ter avançado nas discussões sobre a modernização do setor (PL 414/21), o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), se comprometeu a apresentar uma ampla reforma do setor por meio de medida provisória (MP).
A economista Elena Landau, que capitaneou as privatizações na gestão Fernando Henrique, defende a aprovação do PL 414 e deixar os aperfeiçoamentos para depois. Para ela, o governo deveria chamar o setor para um “amplo debate”, sem ceder à tentação de redigir sozinho um novo marco legal “dentro do gabinete”. Para ela, isso ajudaria a blindar a nova lei do “projeto zumbi”, como chama as emendas parlamentares que tentam criar subsídios bilionários para bancar gasodutos custeados pela conta de luz.
Em recente artigo no portal Energia Brasil, o ex-diretor da Aneel e da Agência Nacional de Águas (ANA), Jerson Kelman, mencionou a possibilidade de o mercado de energia no Brasil enfrentar um “estouro da bolha”. Segundo ele, isso ocorre quando um setor “mal regulado” submete “artificialmente” os agentes de mercado a uma “euforia de ganhos” imediatos.
Kelman chama a atenção, por exemplo, para condição especial dos consumidores da GD, que permite gerar parte da própria energia e ganhar tanto com a redução do consumo com a distribuidora quanto com desconto ao injetar a energia excedente na rede. Ele estima que, em média, a GD conta com subsídio 14 vezes maior que uma família do Tarifa Social. Em geral, a GD reúne consumidores de classe média ou empresas capazes de pagar por um sistema de painel solar.
Procurado pelo Valor, Kelman, que foi presidente da Light e da Sabesp, reforçou sua posição. Ele destaca algumas semelhanças entre a situação do setor elétrico no Brasil com o que ocorreu no mercado americano de títulos hipotecários, que levou à crise da economia em 2008, em que alguns grupos puderam “privilegiar ganhos de curto prazo, desconsiderando os efeitos sistêmicos de médio e longo prazo”.
O presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), Marcos Madureira, diz que pelo menos dois fatores têm onerado a tarifa no mercado regulado. Um é a sobra de energia comprada em contratos de longo prazo, alguns até 2050, que torna a energia mais cara e estimula a migração para o mercado livre. Outro é a crescente adesão à geração distribuída em condições especiais, sem arcar com parte no custo de manutenção da rede de distribuição.
“Está sobrando para as distribuidoras uma energia mais cara, que elas não conseguem realocar no mercado. Isso termina onerando o preço da própria energia dos consumidores que lá estão. É o que a gente chama de espiral da morte, porque o custo maior está ficando para um grupo de consumidores cada vez menor”, alerta Madureira.
Questionado, o Ministério de Minas e Energia informou que o “assunto dos subsídios é pauta importante para a pasta, que trabalha para conter o crescimento desses valores para os consumidores”.
Por Valor Econômico.
https://valor.globo.com/brasil/noticia/2024/01/17/subsidio-na-conta-de-luz-dobra-em-5-anos-e-poe-sistema-em-risco.ghtml