Repensando a gestão energética e o papel das fontes

Apesar de vivermos em um cenário de excesso de oferta de geração, há uma carência na gestão inteligente dos reservatórios hídricos e dos atributos das fontes.

Com a escalada do uso de energias renováveis intermitentes (eólicas e solares), o Brasil se destaca por seu mix energético. Após grande escalada das eólicas desde 2010, a solar tem se destacado de forma proeminente nos últimos cinco anos com uma forte expansão, tanto na alta tensão como na sua forma distribuída (GD). Em determinados momentos do dia, esta fonte alcança a segunda posição em termos de geração elétrica, atrás apenas das tradicionais hidrelétricas.

Mas apesar de vivermos em um cenário de excesso de oferta de geração, nota-se uma carência na gestão inteligente dos reservatórios hídricos e dos atributos das fontes. Hoje não guardamos a água necessária para compensar a incerteza de amanhã das renováveis, e os geradores se instalam praticamente onde querem na rede, a despeito de sabermos da importância de uma expansão da geração coordenada com a da transmissão. Diante dos desafios inerentes à transição energética e mudanças climáticas, que nos impõe lidar com grandes incertezas associadas ao uso dos recursos de geração renováveis, o país precisa evoluir no modo que gerencia seus recursos eletroenergéticos.

A questão não é apenas quanta energia é gerada, mas como é gerida ao longo do tempo, transportada através da rede e absorvida pelos consumidores. Um sistema elétrico repleto de recursos renováveis intermitentes carece de geradores com muita flexibilidade operativa e de recursos de armazenamento. Neste contexto, um novo sistema de preços, capaz de sinalizar os reais custos de oportunidade dos atributos operativos das fontes, torna-se mais do que necessário – é um imperativo.

Os ancilares abrangem a flexibilidade que os geradores podem oferecer para desviarem do ponto nominal em escalas de milissegundos a minutos. Ou seja, é a flexibilidade de curto prazo necessária para contornar incertezas e fenômenos não modelados no processo da programação via mercado. Eles permitem o operador não só manter o sistema em sincronia em tempo real, contornando as variações instantâneas da carga e geração, mas também compensar a indisponibilidade de geradores e linhas em casos de contingências ou mesmo na compensação de erros maiores nas previsões da geração solar e eólica.

Do outro lado, figuram os produtos de flexibilidade, menos explorados na prática. A definição de flexibilidade pode ser bastante ampla e englobar até mesmo aspectos de rede. Apesar disso, eles têm sido amplamente associados a ofertas que os agentes fazem para oferecer ao operador do sistema uma capacidade adicional de variação da geração, para cima ou para baixo, para ser utilizada em intervalos de tempo bem definidos na programação diária. Em geral, são flexibilidades de capacidade de rampa de geração, ou qualquer outro recurso que reproduza esse efeito, como a redução da demanda.

Da maneira descrita, parece existir uma certa interseção conceitual entre os dois. Contudo, a diferença fica clara pela forma com que ambos são utilizados. De maneira simples, os serviços de flexibilidade visam atrair mais recursos de rampa para a programação nominal do operador, já os serviços ancilares são empregados para todo o resto que esta não contemplar na operação de tempo real.

As fontes convencionais controláveis, hidrelétricas e termelétricas, predominam, na prestação de todos esses serviços no Brasil. Quase todos os erros de previsão da geração eólica e solar absorvida pelo sistema hoje são resolvidos pelas hidrelétricas na etapa de ajuste da programação diária e por todas as fontes participantes dos serviços ancilares no tempo real. Assim, dada a grande relevância do papel que a compensação da incerteza, falta de inércia e variabilidade das renováveis assume na transição energética, uma revisão no sistema de remuneração é prioritária. Não obstante, deve-se remunerar toda e qualquer fonte que contribua para esse papel de maneira isonômica. Somente assim poderemos descobrir, e não definir, quais serão as tecnologias e o mix de fontes que irão predominar no futuro do sistema.

Temos amplo cardápio para promover esses serviços: das tradicionais hidrelétricas e termelétricas rápidas já instaladas e operando, passando pelas centrais reversíveis e baterias, até a famosa resposta da demanda, que a depender do preço poderia incentivar o emergente mercado varejista a criar produtos nunca vistos (aqui no Brasil). Mas para que isso funcione, precisamos de um novo esquema de programação diária da geração. Nele, os produtos energia, reservas e flexibilidade de rampas precisam ser cootimizados com garantia de entrega pela rede.

Já no âmbito regulatório, o mercado também precisa ser ajustado para se aproximar à nova realidade operativa. Precisamos de preços que reflitam os custos de oportunidade dos serviços prestados pelas fontes. Da mesma forma como hoje obtemos da programação diária os custos marginais de operação que dão origem ao PLD, preço de curto prazo da energia que liquida as diferenças entre os contratos e geração, obteríamos também os custos marginais desses novos serviços.

Já no âmbito regulatório, o mercado também precisa ser ajustado para se aproximar à nova realidade operativa. Precisamos de preços que reflitam os custos de oportunidade dos serviços prestados pelas fontes. Da mesma forma como hoje obtemos da programação diária os custos marginais de operação que dão origem ao PLD, preço de curto prazo da energia que liquida as diferenças entre os contratos e geração, obteríamos também os custos marginais desses novos serviços.

Assim, enquanto o PLD remunera os geradores pelo que se espera que vá acontecer no dia seguinte, os preços da flexibilidade e dos serviços ancilares passam a remunerar os agentes de acordo com suas capacidades de variar a energia ao longo das horas e de responder em tempo real. Esses novos preços passariam a complementar o esquema de remuneração por custos marginais, atualmente criticados por não refletirem o valor dos recursos energéticos que permitem absorver a incerteza das renováveis. Eles ajudariam a reequilibrar o valor das fontes refletindo em suas atratividades comerciais os papéis desempenhados de forma transparente e economicamente coerente.

Essa é uma evolução no sistema de preços tão natural e necessária quanto foi a dos preços horários implementada em 2021. Ela encontra respaldo na literatura e na prática da maior parte dos mercados elétricos desenvolvidos do mundo. Mas além disso, para garantirmos a sustentabilidade desses serviços ao longo dos anos, o cálculo do valor da água, realizado pelos modelos de médio e longo prazo, também precisa ser atualizado de forma consistente. Somente assim as hidrelétricas e termelétricas serão coordenadas de forma a guardar a água necessária para garantir esses serviços no futuro.

Um novo sistema com preços de serviços ancilares e flexibilidade cootimizados com a energia não seria a solução de todos os problemas, mas permitiria um norte para investimentos menos míope aos novos papéis das fontes. Alexandre Street é professor associado do Departamento de Engenharia Elétrica do CTC/PUC-Rio.

Por Valor Econômico.
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/repensando-a-gestao-energetica-e-o-papel-das-fontes.ghtml

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