Decisões relevantes do setor elétrico são conduzidas no âmbito de uma estrutura de governança em que ninguém se responsabiliza pelas consequências danosas dos subsídios, por exemplo.
Dois episódios importantes já aconteceram em julho. O primeiro foi uma carta do Operador Nacional do Sistema (ONS). Com a possibilidade de hidrologia adversa e crescimento do consumo nas horas de demanda máxima, o ONS solicitou às termelétricas “a maximização da disponibilidade de geração e a prontidão das usinas (…)”. É o cuidado de quem, conhecida a matriz elétrica e o que pode vir por aí, precisa dar conta da segurança e da confiabilidade do suprimento – custe o que custar.
Por seu ineditismo, o segundo episódio foi ainda mais relevante. Dia 12, numa iniciativa do Ministério de Minas e Energia, foi realizado o seminário “Justiça tarifária e liberdade do consumidor”. O tom das discussões assemelhava-se a uma sessão de descarrego. De descarrego de subsídios. A plateia era formada por lobistas e executivos de entidades do governo e de empresas privadas. As três categorias dominaram as apresentações e os debates, sempre bem didáticos e teatrais.
Para quem assistia, era essencial prestar atenção também ao que não era dito. Os discursos pareciam direto ao ponto. O estouro da bolha elétrica, que lá foi chamada de espiral da morte, já bate às portas. Alguma coisa precisa ser feita.
O representante dos grandes consumidores foi o mais pedagógico. E único a dizer que não basta cessar o ciclo de subsídios. É fundamental sanear as distorções do passado. E são muitas. Mostrou que um grande consumidor paga, de subsídios, o mesmo que um pequeno consumidor. Mas não disse quanto cada um recebe dessas subvenções. O grande consumidor, quando compra energia de renováveis,
tem um preço até 60% menor e ainda é beneficiado com um desconto de 50% dos custos de transmissão. O pequeno, assim, transfere muito de sua renda para o grande consumidor.
Para os geradores independentes, alinhados às comercializadoras, os subsídios precisam ser rateados entre todos, inclusive os usuários da geração distribuída (GD). Correto. Mas nada falaram do “jogo cruzado” que envolve geradores, comercializadoras e suas distribuidoras coligadas. Esse artifício eleva os custos para os pequenos consumidores.
“O setor elétrico se afastou dos fundamentos”. Foi a conclusão do lobby das eólicas. É verdade que os fundamentos há muito foram pelo ralo. Mas a bancada das eólicas, como outras, a querer mais e mais benesses, pegou na marreta que destruiu os alicerces da razoabilidade econômica.
A dissidência ficou com a solar e a GD. Mas mantiveram a coerência. No dilema do prisioneiro, clássico da teoria dos jogos, foram traídos pelos pares. Com suas bancadas no Congresso, e boas palavras de ordem, são dois dos lobbies mais poderosos e bem articulados. Insistiram na enganosa estratégia de que os subsídios sequer existem.
As palavras mais contundentes vieram do ministro de Minas e Energia. Com bons exemplos, descreveu mecanismos que fazem o mais pobre pagar pelo mais rico. Citou os painéis fotovoltaicos, que estão nos tetos das casas maiores, mas a conta é paga pelo morador da residência com telhado minúsculo. Ou o autoprodutor oportunista, palavras do ministro, que se empenha para ter benefícios equivalentes aos da população de baixa renda.
Mas a fala do ministro deu a entender que as medidas provisórias (MPs) 1.212 e 1.232, ambas deste ano, surgiram do além. Ou que projetos de lei (PLs) aprovados em junho, a pretexto do fomento ao hidrogênio verde e às eólicas offshore, não contaram com o aval de parlamentares do governo.
Juntos, MPs e PLs adicionam, em 15 a 20 anos, quase R$ 600 bilhões à conta de luz. Era fundamental ter dito que tais decisões foram equivocadas. Desequilibram a repartição dos custos.
A propósito, o seminário teve como lado mais positivo o reconhecimento do grave desequilíbrio, e que não se deve perder tempo para corrigi-lo. Excluídas as incoerências e contradições, se 2/3 do que disseram palestrantes e debatedores for para valer, há esperança.
Mas há razões para desconfiar. Lobbies, entidades do governo e empresas têm completa noção do jogo que participam, e ele não é de soma zero. No jogo de soma zero, como o poker, o que A ganha é exatamente igual à perda de B. No jogo assimétrico jogado no evento, o perdedor é o pequeno consumidor, que nem estava “na mesa”. É por isso que não foi necessário ser muito coerente com afirmações e
promessas.
Veja o caso das distribuidoras (Ds), que, no seminário, defendiam o pequeno consumidor. As Ds, monopolistas do fornecimento para esses consumidores, passaram, diante do salve-se quem puder, a atrair parte deles para o sofisticado mercado de energia por assinatura, operado por suas coligadas. Isso faz crescer a conta de luz para o restante dos seus clientes. E, ao que se sabe, ficará por isso mesmo. É a regra.
No meio dessa desordem de normas, que mais confundem que explicam, o consumidor ficou encurralado, sem justiça tarifária e sem liberdade. E é impossível resolver o problema dos subsídios sem eliminar essa anarquia elétrica.
Há um bom tempo as decisões relevantes do setor elétrico, nos campos dos investimentos e da alocação de riscos e custos, são conduzidas no âmbito de uma estrutura de governança que se aproxima da colusão anárquica – quando ninguém se responsabiliza pelas consequências danosas dos subsídios, por exemplo.
Com o regulador no córner e dependente do poder concedente, que parece sem meios políticos para resistir aos lobbies, o resultado é um Leviatã de Papel, como Daron Acemoglu e James Robinson (em Corredor estreito) caracterizam o Estado frágil. É o mesmo que “um poder oco, incoerente e desorganizado (…)”. Ou, no enquadramento do setor elétrico, é um Estado tutelado, que penhorou o regulador.
Não foi à toa que, no seminário do dia 12, pouco se falou de mudanças nessa estrutura de governança, que deu concretude à anarquia elétrica. Mas sigo com alguma esperança no desmame de subsídios.
Por Estadão.
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/parece-anarquia-eletrica.ghtml