Usinas devem começar a operar até 2027, com produção suficiente para abastecer 66 milhões de casas por ano. Flexibilização de requisitos e fim de subsídios levaram a aumento de pedidos.
O Brasil tem 1.011 projetos de geração de energia renovável que devem começar a operar até 2027. Esses empreendimento não contam, porém, com garantia de escoamento da produção a outras localidades.
O cenário foi intensificado graças a um decreto editado pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL), em 2021. O texto introduziu a possibilidade de autorizar propostas sem um parecer para conectar a usina ao sistema elétrico nacional (entenda mais abaixo).
Os empreendimentos para os próximos quatro anos somam aproximadamente 46,5 GW (gigawatts) de potência. Isso é o suficiente para iluminar 66 milhões de residências por ano, segundo cálculo da Empresa de Pesquisa Energética (EPE).
A maior parte dos pedidos é de usinas solares, no total de 37,9 GW, com previsão de começar a operar entre 2025 e 2027.
Esses projetos pediram autorização para operar à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), mas não têm contratos de uso do sistema de transmissão ou de distribuição que garantam sua conexão à rede.
Na prática, significa que não poderão transportar a energia produzida para seus clientes em outras localidades quando entrarem em operação.
Para começar a operar, um projeto de usina precisa de:
-parecer de acesso do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), que traga a possibilidade e as condições de conexão ao sistema;
-autorização da Aneel;
-e assinatura de contrato de uso do sistema de transmissão ou de distribuição, que serve como garantia de que a usina vai conseguir se conectar.
Segundo levantamento da Aneel a pedido do g1, 730 projetos foram autorizados sem parecer do ONS.
‘Corrida’ de projetos
No último ano, uma mudança na concessão de subsídios a usinas de energia renovável levou, segundo especialistas, a uma “corrida” para apresentar projetos à Aneel.
Segundo a regra, os benefícios à operação de usinas só poderiam ser aplicados a projetos apresentados até março de 2022. Após o prazo, os descontos passaram a ser reduzidos progressivamente, de acordo com um cronograma definido em lei.
Em uma espécie de flexibilização, em dezembro de 2021, Bolsonaro editou decreto que permitiu à Aneel deixar de exigir um documento do ONS que comprova a possibilidade de conexão da futura usina ao sistema de transmissão nacional.
Isso intensificou a chamada “corrida ao ouro” para obter as permissões de geração, principalmente de usinas de energia solar e eólica, mas sem a garantia de que poderiam escoar a energia quando começassem a operar.
Sem estar conectado, não é possível escoar a energia produzida aos consumidores em outras localidades.
Capacidade de transmissão
Segundo o diretor da Aneel Hélvio Guerra, o aumento do número de projetos de geração de energia sustentável revela um problema do sistema elétrico brasileiro.
Guerra afirma que não há capacidade para recepcionar as iniciativas na atual estrutura de transmissão nacional.
“Se por um lado temos um estoque de projetos já outorgados ou em análise na Aneel, temos também uma extensa rede de transmissão que precisa ser contratada, construída e disponibilizada para atender a toda essa geração. Entretanto, essa expansão de transmissão tem um custo, visto que suas instalações são remuneradas por sua disponibilidade”, explica.
Para aumentar a capacidade, o governo tem lançado grandes leilões de transmissão — em que se contrata a construção das linhas e a infraestrutura necessária para o escoamento de energia. Só em 2023, os dois certames devem bater recordes sucessivos de investimentos previstos.
Ex-diretor da Aneel e professor aposentado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Edvaldo Santana avalia, porém, que é um erro construir linhas de transmissão para atender aos projetos.
O especialista frisa que o crescimento econômico do Brasil e o nível atual de consumo não justificam tantos investimentos em geração e escoamento de energia.
“Pode até construir transmissão, mas vai construir para atender uma geração que não tem consumo. O consumidor vai pagar por uma transmissão, como nesses últimos leilões, e não vai consumir a energia”, completa.
De acordo com o advogado Henrique Reis, a Aneel tem entendido a falta de infraestrutura para conexão das usinas no sistema interligado nacional como um risco do empreendedor. Reis afirma que a conexão ao sistema é um direito assegurado por lei.
Suspensão de contratos
Com tantos projetos na fila, a Aneel promoveu alterações em entendimentos do processo de autorização para usinas de energia renovável.
De acordo com a advogada Bruna Correia, em um primeiro momento, as empresas começaram a apresentar pedidos para alterar o cronograma de construção dos empreendimentos.
“Os agentes começaram a entrar com pedidos de alteração do cronograma alegando diversos aspectos, muitos deles como consequência ainda da Covid-19”, diz.
Logo depois, a Aneel adotou novo procedimento para atrasos na implantação de usinas do mercado livre de energia — grande maioria dos projetos na fila. A partir da mudança, os agentes passaram a ter que comprovar justificativas para alterar o cronograma.
“Se você não tem a alteração do cronograma, não tem a postergação do início de execução do Cust [Contrato de Uso do Sistema de Transmissão], que é um custo alto para os agentes, e eles podem sofrer processos de fiscalização sobre o andamento da implantação e [virar] objeto de penalidades administrativas”, explica.
A mudança abriu outra frente de judicialização por parte dos empreendedores. Segundo a advogada, responsáveis pelos projetos começaram a mover ações na Justiça para suspender a execução dos contratos.
‘Dia do perdão’
No início de julho, a diretoria da Aneel decidiu criar um “dia do perdão” para as usinas de energia renovável com contratos de uso do sistema em execução ou que iniciariam até 2026. O ONS recebeu 351 pedidos de adesão.
As usinas estão localizadas em nove estados: Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Norte, Piauí, Ceará, Mato Grosso do Sul, Goiás, Paraíba e Alagoas — por ordem de quantidade de energia que seria inserida no sistema.
Como contrapartida, os empreendimentos não poderiam dar continuidade a processos judiciais para suspender a execução dos contratos. Com isso, a Aneel deve conseguir liberar cerca de 6 GW (gigawatts) no sistema de transmissão para escoar energia.
A Aneel também regularizou a situação das usinas com contratos assinados com cronograma atrasado, mas que ainda têm interesse em manter as autorizações de construção.
A agência deu prazo de 36 meses para os empreendimentos, com a ressalva de que as usinas deixem de contar com os subsídios.
“Há alguma expectativa de que a Aneel, dentro desse novo ambiente, talvez comece a mudar um pouco o entendimento e a percepção dela. Ou abra uma nova fase de consulta pública para dar tratamento a esses agentes que não foram abordados”, afirma a advogada Bruna Correia.
Henrique Reis prevê que, em um eventual segundo “dia do perdão” para os projetos sem contratos, a Aneel deve enfrentar uma discussão sobre as justificativas das usinas para os atrasos na entrada em operação.
“Por outro lado, pode haver problemas por grupo econômico. Caso haja uma entrega de um determinado volume de outorga sem implantação e sem excludente de responsabilidade, na avaliação de novos pedidos de outorga lá na frente, a Aneel pode avaliar o histórico do grupo econômico”, afirma.
A depender do rigor da agência na concessão de novas outorgas para usinas, empresas que não conseguiram cumprir o cronograma de projetos anteriores podem ter dificuldade para aprovação.
A Aneel também colocou em consulta pública uma mudança nas regras de acesso à rede de transmissão, para passar a exigir a assinatura do contrato de uso do sistema de transmissão antes de autorizar a construção de uma usina.
“Entendemos que a garantia do Cust [Contrato de Uso do Sistema de Transmissão] será uma importante ferramenta para a garantia de que os agentes que assinem tais contratos estejam de fato interessados em empreender”, diz Hélvio Guerra.
Guerra defende que as duas medidas — o “dia do perdão” e a exigência dos contratos de transmissão — vão contribuir para um “melhor ambiente de negócios no setor elétrico, o que é importante não apenas para os geradores que almejam implantar seus empreendimentos, como para toda a sociedade”.
A exigência dos contratos, contudo, só deve valer para as usinas que solicitarem autorização depois que a norma for aprovada, o que não endereça a fila de projetos atual. A mudança ainda está em consulta pública, recebendo contribuições do setor.