Aumento da conta do consumidor regulado, espiral da morte e problemas para até mesmo os consumidores com GD, estes são alguns dos impactos do aumento dos sistemas que pode ter consequências catastróficas, pois sem redes de distribuição não há GD
O crescimento da geração distribuída no Brasil surpreendeu desde os céticos até os mais entusiastas. Foram tantos projetos de geração adicionados ao sistema que nem mesmo o mais preciso exercício de futurologia seria capaz de prever. Porém, o mais surpreende – que, como dizem os ingleses, no one saw it coming – são os efeitos causados pelo incremento da GD no setor elétrico brasileiro. Diferentemente do esperado, e rompendo com premissas básicas da macroeconomia, o aumento da geração de energia
levou ao aumento do preço da energia para os consumidores cativos das distribuidoras de energia. Para além disso, este fenômeno vem causando severos impactos nas concessões de distribuição de energia, com sérios riscos sistêmicos que ameaçam a viabilidade do serviço público subjacente a estes módulos concessórios. O presente artigo pretende, de maneira sucinta, endereçar alguns desses riscos e os seus respectivos impactos.
A geração distribuída, também conhecida como “GD”, compreende a geração de energia no próprio local de consumo desta ou próximo a ele. Trata-se de modelo de descentralização da geração de energia, o qual emprega geradores de menor porte, por intermédio da qual o excedente de energia elétrica gerado por unidade consumidora de titularidade de um consumidor-gerador, pessoa física ou jurídica (notadamente empreendimentos que se valem da energia solar, como fonte de energia), é compensado ou creditado pela mesma unidade, no âmbito do Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE).
A lógica por trás da GD é a de capilarizar a geração de energia e torná-la mais próxima do consumidor. Ou seja, permite-se a geração de energia em diversos locais distintos. Tal modalidade de geração pode ser empreendida por consumidores, os quais buscam reduzir o valor de suas tarifas, inserindo no sistema a energia por si gerada. É o caso, por exemplo, do consumidor que instala painéis fotovoltaicos no telhado de sua casa para se beneficiar da energia gerada. Uma vez produzida a energia através da geração distribuída, o consumidor-gerador se utiliza desta através do autoconsumo local, sendo que o excedente de energia gerada é injetado no sistema de distribuição. Possibilita-se, assim, que outras unidades consumidoras de titularidade do mesmo consumidor-gerador possam usufruir desta energia através da chamada geração remota e também que o consumidor-gerador se valha de créditos para a compensação de sua fatura de consumo mensal.
Por meio da Resolução Normativa nº 482/2012 da ANEEL, a Geração Distribuída tornou-se amplamente acessível à sociedade. Segundo Vitor Rhein Schirato e Felipe de Almeida Ribeiro Campos[3], a REN nº 482 “introduziu um regime especial de consumo porque possibilitou à classe de consumidores regulados dos pequenos geradores distribuídos, exclusivamente, por meio do SCEE, o abatimento no valor cobrado pela energia elétrica consumida, em sua fatura, do valor correspondente de energia elétrica gerada por suas
pequenas centrais geradoras.” Ainda, de acordo com os autores, a resolução inaugurou um “novo regime jurídico de geração de energia elétrica no Brasil, uma vez que os pequenos geradores distribuídos foram autorizados a gerar energia elétrica sem a necessidade de um título jurídico habilitante (concessão, permissão ou autorização), bastando que fizessem a solicitação de conexão da central geradora à distribuidora e cumprissem os demais requisitos regulamentares.” Desde então, percebeu-se um crescimento desenfreado desta modalidade de geração de energia. Após a publicação da Resolução supramencionada, tal normativo foi alterado em quatro oportunidades distintas, por intermédio das Resoluções Normativas da ANEEL nº 517/2012, nº 687/2015, nº 786/2017 e nº 1.000/2021. Isso se deu em razão do flagrante crescimento da GD e das novas necessidades de regulamentação e reforma das normas então vigentes.
A geração distribuída teve a sua mais recente normatização através da edição da Lei nº 14.300/2022, que entrou em vigor em 6 de janeiro de 2022. Referido diploma passou a regulamentar o Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE), através do qual as unidades consumidoras com micro ou minigeração distribuída injetam energia no sistema de distribuição, fazendo jus à posterior compensação com o consumo de energia ou contabilização de crédito de energia futura. A respeito do tema, Schirato e Campos[4] pontuam que o Sistema de Compensação de Energia Elétrica ou SCEE “é o que possibilita aos consumidores do mercado regulado (que compram energia diretamente da distribuidora) com mini e/ou microgeração distribuída compensarem, em sua fatura de energia elétrica, o valor a ser pago pela quantidade de energia elétrica consumida da rede de distribuição com a quantidade de energia elétrica injetada a partir da central geradora. Dessa forma, a energia elétrica injetada na rede de distribuição é cedida a título de empréstimo gratuito à distribuidora, devendo esta compensar o consumidor-gerador com o abatimento do valor cobrado pela energia consumida da rede de distribuição no mesmo ciclo de faturamento ou nos ciclos de faturamento subsequentes.”
Ocorre que a geração distribuída vem crescendo de maneira mais acelerada do que a própria ANEEL é capaz de regular. Segundo informações do Painel de Monitoramento de Geração de Energia da ANEEL[5], no final do ano de 2017, a totalidade de usinas de GD conectadas ao Sistema Interligado Nacional (“SIN”) somava 0,24 GW de potência instalada. Ao final de 2023, a GD somou 25,9 GW de potência instalada, com 2,2 milhões de usinas conectadas ao SIN. Hoje, a capacidade instalada de geração distribuída no Brasil é
superior a das usinas de Itaipu e Belo Monte juntas. A evolução da GD no Brasil pode ser melhor compreendida através do gráfico abaixo:
O aumento da geração distribuída verificado no período é de mais de dez mil por cento (10.691%), ao longo de apenas seis anos. Somente no ano de 2022, a quantidade de potência instalada de GD adicionada ao sistema foi de 8,3 GW, praticamente idêntica à potência instalada de toda a UHE Tucuruí (8,5 GW), que é a segunda maior usina geradora de energia no Brasil.
Verifica-se também uma sutil queda de potência instalada no ano de 2023 em relação ao ano de 2022. Isto se deve, possivelmente, ao fato de a Lei nº 14.300/2022 ter estabelecido, em seu art. 26, inciso II, que os novos projetos de micro e minigeração distribuída com protocolos de solicitação de acesso posteriores à data de 7 de janeiro de 2023 estarão sujeitos à redução progressiva dos subsídios tarifários, na forma prevista pelo art. 27 da referida lei. Esta circunstância gerou uma corrida desenfreada por solicitações de acesso, que levou ao cadastramento de uma quantidade de projetos de GD equivalente a duas usinas de Itaipu, no período de apenas três meses[6]. Foram protocoladas 486,6 mil solicitações de acesso de projetos de GD, totalizando 32,2 GW de potência instalada, no período de outubro de 2022 até 7 de janeiro de 2023. Todavia, mesmo com a redução de subsídios imposta pela Lei nº 14.300/2022, a quantidade de projetos de GD conectados ao sistema no ano de 2023 continuou sendo descomunal. Foram 633.420
usinas conectadas ao SIN, com potência instalada total de 7,5 GW.
O problema é que as previsões para o futuro não são de dias melhores. Há algumas semanas, o Operador Nacional do Sistema (“ONS”) divulgou o sumário executivo do Plano de Operação Elétrica de Médio Prazo do SIN (“PAR-PEL”) de 2023. Neste documento, o ONS apontou que em dezembro de 2023 as fontes solar (GD e centralizada) e eólica totalizaram 64,7 GW de potência instalada, o que corresponde a 30,2% da matriz energética do país. Já a previsão para dezembro de 2027 é de que estas fontes totalizem 122,4 GW de potência instalada. Considerando que a capacidade instalada total do parque gerador nacional projetada para o ano de 2027 será de 281,5 GW, as usinas solares e eólicas representarão mais de 44% da nossa matriz energética. O grande problema reside no fato de que a previsão de carga (i.e., consumo de energia) para o ano de 2027 é de apenas 110,9 GW, ou seja, menos da metade potência instalada projetada. Teremos uma capacidade instalada de 281,5 GW para consumirmos apenas 39% de toda essa energia. É um fenômeno assombroso e sem precedente na história. Além da ocorrência de uma geração vertida de todas as fontes (i.e., energia desperdiçada), o excesso de geração não reduzirá o valor da energia do consumidor cativo. Pelo contrário, a tendência é que a sobreoferta aumente o preço da tarifa paga por consumidores comuns das distribuidoras de energia. O efeito negativo do excesso de geração de fontes incentivadas, sobre o preço da tarifa de energia, é apontado com clareza por Edvaldo Santana[7], ex-Diretor da ANEEL, em recente artigo publicado pelo jornal O Globo: “(…) o sistema elétrico tem uma condição essencial para funcionar: a geração, a cada milésimo de segundo, precisa ser igual ao consumo. Como a capacidade de gerar, atualmente, é muito maior que o consumo, usinas ficarão sem produzir ou
gerar. As usinas não geram quando nem quanto querem, mas para atender a uma ordem do ONS, que equilibra instantaneamente oferta e demanda. Só que fazem contratos de venda de energia com distribuidoras e grandes consumidores. Se não gerarem, terão de comprar energia (de quem gerou) para honrar esses contratos. Essa transação pode ter custo elevadíssimo. E, como não foi a usina a causadora
do problema, exigirá ressarcimento do poder concedente, que ‘distribuiu’ uma quantidade exagerada de outorgas. O consumidor pagará a conta, como pagou às hidrelétricas, eólicas e solares que ficaram impedidas de gerar.”
Fica evidente o avanço desenfreado da GD, que aumenta vertiginosamente mês a mês. Porém, deve-se ter em mente os limites do sistema de distribuição e a capacidade de absorção da energia gerada pela GD. É dizer, as investidas desordenadas dos geradores, sem a realização de uma coordenação regulatória, estão produzindo um cenário de escassez de infraestruturas que possam ser compartilhadas, sem prejuízo da segurança energética e da oneração da maior parte dos usuários do sistema de distribuição.
A problemática reside no fato de que a conexão de novos empreendimentos de geração distribuída no sistema de distribuição é responsável por uma série de repercussões nas concessões de distribuição de energia. Os impactos verificados possuem causas diversas. Todavia, em que pese decorram de causas diferentes, os seus efeitos acometem o mesmo ponto: o equilíbrio econômico-financeiro das concessões.
O primeiro impacto verificado decorre da existência de intenso subsídio concedido aos empreendimentos de geração distribuída. Inicialmente, quando publicada a Resolução Normativa nº 482/2012 da ANEEL, os projetos de GD contavam com isenção de toda a Tarifa de Energia (TE), composta pela energia em si e pelos encargos incidentes, e toda a Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD), composta pelos custos de transmissão do fio a e do fio b, encargos e perdas de energia. Segundo estimativa da Associação Brasileira de Distribuidoras de Energia Elétrica (ABRADEE), o custo deste subsídio no ano de 2023 é de aproximadamente R$ 6,8 bilhões. A projeção da associação é de que até o ano de 2045 o valor total chegue à cifra de R$ 201 bilhões. A despesa causada pelo subsídio à GD é transferida para os consumidores cativos das concessionárias de distribuição de energia. Logo, o custo da geração distribuída
é absorvido pelos consumidores “comuns”, que não fazem uso desta forma de geração de energia.
O segundo impacto causado pela geração distribuída está relacionado ao custo de expansão do sistema de distribuição de energia para acomodar a crescente e descoordenada demanda por novas conexões. O problema é que o sistema de distribuição de energia é um recurso escasso, de forma que nem sempre o sistema possui capacidade para novas conexões e, sobretudo, para injeção de mais carga. Quando o
sistema se encontra saturado (em decorrência da inviabilidade técnica da absorção de novos pedidos de acesso), a distribuidora terá de realizar novos investimentos na construção de subestações de energia.
Como se sabe, recai sobre as concessionárias de distribuição de energia elétrica uma infinidade de pedidos de acesso ao sistema de distribuição. Em um cenário de limitação dos recursos e da própria escassez física do sistema, é natural que não se tenha condições de atender imediatamente a todas as solicitações formuladas por agentes de geração distribuída. Seja do ponto de vista técnico-operacional, seja do ponto de vista econômico-financeiro. O sistema de distribuição possui limitações que devem ser observadas, sob pena de colapsá-lo, inviabilizando o seu funcionamento e deixando os consumidores “no escuro”. Isso se dá pela indisponibilidade de novas subestações, essenciais à distribuição por evitar a perda excessiva de energia durante o longo percurso e permitindo a redução de tensão para o uso urbano. Assim é que, se não há subestações disponíveis ou suficientes, não é possível conceder mais acessos ao sistema, sob pena de colapsá-lo. Justamente para se evitar qualquer risco de colapso da rede de distribuição, as concessionárias de distribuição de energia têm adotado a cautela de encaminhar ofícios ao Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), solicitando a emissão de pareceres acerca do impacto das conexões de micro e minigeradores na rede básica de fronteira, na forma disposta pelo art. 75 da Resolução Normativa ANEEL nº 1.000/2021. De modo geral, o posicionamento técnico do ONS tem sido no sentido de apontar inúmeras restrições às solicitações de acesso, devido ao esgotamento da rede básica de fronteira, que não possui solução estrutural previamente definida. A situação não pode ter a sua interpretação divorciada da teoria das essential facilities, que teve suas bases fixadas no caso MCI Communications Corp. vs. AT&T[8], julgado pela Corte de Apelação do Sétimo Circuito da Justiça Federal dos EUA. Como sintetiza Alexandre Wagner Nester[9], em obra específica sobre o tema, a essential facility doctrine há de ser vista como “o instituto jurídico segundo o qual se assegura a determinados agentes econômicos, mediante o pagamento de um preço justo, o exercício do direito de acesso às infraestruturas e redes já estabelecidas (assim como a determinados insumos e bens), que são indispensáveis para o desenvolvimento da sua atividade econômica, cuja duplicação é inviável, e que se encontram na posse de outros agentes (normalmente em regime de monopólio natural), seus potenciais concorrentes.” Daí porque “a esse direito de acesso corresponde uma obrigação específica do detentor da infraestrutura de ceder o acesso ao terceiro, em termos não discriminatórios e razoáveis, a fim de viabilizar os objetivos e políticas de concorrência preconizados pelo Estado.”
A situação, inclusive, já foi objeto de pronunciamento judicial pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, ao julgar o Agravo de Instrumento nº 0451213-40.2023.8.13.0000. Ao decidir sobre o caso, o TJMG consignou: “É importante um dado da produção: apenas no mês de novembro de 2022 houve produção de 22 GW de energia elétrica, o equivalente à produção da Hidrelétrica de Três Gargantas, na China, a maior do mundo, e da Hidrelétrica de Santo Antônio, a 5ª do Brasil, juntas. O dado é espantoso ao se levar em
consideração que a energia não consumida pelo produtor é injetada na rede e esta necessariamente deve ter condições para receber o excedente. É como querer armazenar, por exemplo, dez mil litros de água em uma caixa que tem capacidade para apenas cinco mil litros. Será necessário fazer investimento a fim de ampliar a capacidade de armazenamento, no caso da água, ou de recepção de excedente, em relação à energia elétrica.”
Para tentar conter esse cenário antagônico – em que há excedente de demanda por acesso de um lado e esgotamento físico de escoamento do sistema de outro –, a ANEEL editou as Resoluções Normativas nº1.065/2023 e nº 1.069/2023. A primeira veiculou o chamado “Dia do Perdão”, permitindo a rescisão amigável de contratos de uso do sistema de transmissão (CUST) celebrados por geradores de energia
renovável. Já a segunda resolução promoveu uma reforma estrutural nas regras de acesso ao sistema de transmissão (rede básica), promovendo e instituindo: (i) substituição do mecanismo de Informação de Acesso; (ii) ordem de análise das solicitações de acesso; (iii) garantia financeira para a obtenção de Parecer de Acesso; (iv) inversão de fases de assinatura e início de execução do CUST em relação à obtenção de outorga; e (v) garantias adicionais.
Como o valor da tarifa de energia é composto majoritariamente pelos custos da prestação do serviço público de distribuição, as despesas e os investimentos a serem incorridos pelas distribuidoras precisam ser adequadamente planejados, pois impactam de maneira direta no valor da tarifa de energia a ser paga pelo consumidor final. Logo, considerando o seu relevante impacto sobre o valor da tarifa paga pelo consumidor final, os investimentos que serão realizados pelas concessionárias estão sujeitos a diversos critérios regulatórios e acompanhamento pela ANEEL, enquanto ente regulador do setor. A regulação destes investimentos se dá através do chamado Plano de Desenvolvimento da Distribuição (PDD), que é regulamentado pelo Anexo II, da Resolução Normativa ANEEL nº 956/2021, que estabelece os Procedimentos de Distribuição de Energia Elétrica no Sistema Elétrico Nacional (Prodist). O referido Anexo
II contém o Módulo 2 do Prodist, dedicado ao “Planejamento da Expansão do Sistema de Distribuição”. O Módulo conta com quatro seções, sendo que a última (Seção 2.4) trata exclusivamente do referido PDD que “apresenta o resultado dos estudos de planejamento do sistema de distribuição, incluindo plano de expansão, plano de obras e relação de obras realizadas, que devem ser encaminhados pela Distribuidora à ANEEL em formato específico definido pela Agência.” O documento aponta, em seu item 2, o objetivo de “Estabelecer as diretrizes para o planejamento da expansão do sistema de distribuição, subsidiando a definição dos pontos de conexão das instalações dos usuários;”. Os investimentos a serem realizados pelas concessionárias de distribuição, portanto, são planejados com antecedência de 5 e 10 anos através do PDD, que é apresentado anualmente à ANEEL.
Tais impactos acometem diretamente a equação econômico-financeira das concessões de distribuição de energia elétrica. Em um primeiro momento, este impacto é suportado pelas próprias concessionárias. Ocorre que, em um segundo momento, este custo é repassado para a tarifa de energia – paga pelos consumidores que não utilizam a geração distribuída. De tempos em tempos, conforme ciclo definido no
contrato de concessão celebrado entre as concessionárias de distribuição e o Poder Concedente, é realizada uma revisão tarifária, a qual, na maioria das vezes, leva ao aumento da tarifa. Tal mecanismo serve para preservar o bom funcionamento do sistema de distribuição, a qualidade do serviço e do ativo. Os contratos de concessão de distribuição de energia no Brasil adotam o modelo regulatório tarifário denominado price-cap. Este modelo é pautado pela geração de incentivos ao concessionário, pressupondo a definição de um “valor teto” para a tarifa, que será reajustada anualmente pela taxa de inflação descontada de KPIs (Key Performance Indicators) atrelados a ganho de produtividade, estabelecidos previamente. De acordo com Mario Luiz Possas, João Fagundes Pondé e Jorge Fagundes[10], tal metodologia “Compreende uma regra de reajuste por índice público de preços, acompanhada de previsão de redução de custos por aumento de produtividade, com o objetivo de estimular, de forma muito simples e transparente, a busca de aumento de eficiência microeconômica”. O objetivo principal do modelo price-cap é incentivar o aumento de produtividade, através de recompensas ao concessionário que tiver um desempenho além do benchmark (i.e., de parâmetros pré-estabelecidos pela agência reguladora). Trata-se de uma “Regulação por Incentivos”, pois as concessionárias se beneficiarão dos ganhos de produtividade. O resultado econômico, todavia, será compartilhado com os consumidores, através de um mecanismo redutor de tarifa, aplicado na chamada “Revisão Tarifária Periódica” (RTP).
Com o aumento do valor da tarifa de energia, maior será o incentivo para outros consumidores migrarem para a GD, causando, consequentemente, mais prejuízo ao sistema de distribuição e prejudicando mais ainda a receita das distribuidoras (que, por consequência, tornará a tarifa de energia ainda mais cara). Nesse sentido, Walney Christian de Medeiros Silva[11] aponta que “Segundo a EPE (2012) a análise da competitividade da geração fotovoltaica está diretamente ligada à comparação dos custos desse tipo de geração com os valores pagos pelos usuários finais às concessionárias de energia elétrica em determinada área de concessão, o que se denomina de paridade tarifária. Isso quer dizer que quanto maior for a tarifa de energia elétrica em determinada área de concessão, maior será a atratividade da microgeração solar fotovoltaica. Isso quer dizer que quanto menor forem os custos da microgeração e maior for a tarifa de energia elétrica, maior também é a quantidade de adesões a microgeração e, conforme demonstrado
acima, quanto maior a quantidade de adesões maiores os impactos para as concessionárias e para os demais usuários, que poderão ter sua tarifa de energia elétrica aumentada por conta disso.”
A situação se torna, portanto, um ciclo vicioso. Esse ciclo já foi estudado pela literatura especializada e foi intitulado de espiral da morte, tal como explica Leandro Bruno Marques[12]: “Como a disseminação da GDFV tem impacto no preço da energia elétrica, esse não é sentido pelos prossumidores ou são pouco impactados, nos casos de gerarem menos que o consumo, pois sua capacidade de geração de energia é equivalente à sua demanda média, o aumento sistêmico impacta principalmente os consumidores que não adotarem a GDFV, esse fenômeno é chamado de cost-shifting. O processo causa uma realocação dos custos, como demostrado no ciclo da espiral da morte, a entrada da GDFV reduz a receita das distribuidoras, que assumem os custos no primeiro momento, na revisão tarifária os custos são calculados e repassados na tarifa, já que os prossumidores geram sua própria energia na média, esse impacto recai pelos não adeptos da geração distribuída. Dessa forma os custos são redistribuídos de forma que há uma externalidade do consumo, transferindo os custos dos optantes pela GDFV para os não optantes.”
O tema também é endereçado por Solange David[13], ex-Vice Presidente da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, que em sede doutrinária pontuou que “com a evolução tecnológica do setor elétrico, [a espiral da morte] pode ser caracterizada por três efeitos fundamentais: (i) no equilíbrio econômicofinanceiro das distribuidoras em razão da redução do volume de energia vendido, com consequente queda no volume da receita; (ii) no subsídio que consumidores ligados à rede pagarão com a migração de consumidores de renda mais elevada para a autogeração; e (iii) no risco de sustentabilidade das redes do sistema elétrico (inclusive com a ampliação das intermitência das renováveis), pela redução da base pagadora, geralmente de mais baixa renda, o que passa a ser uma questão de cunho social (…)”. Ainda segundo a autora, a “ampliação da presença dos recursos energéticos distribuídos (RED) – energia eólica e
solar fotovoltaica – pode potencializar o efeito da ‘espiral da morte’, principalmente se houver uma dinâmica de crescimento exponencial da micro e minigeração, incentivado por políticas que favoreçam o investimento e torne a reação dos consumidores mais intensa.”
Por isso, a regulação da geração distribuída precisa ser urgentemente revista, tanto do ponto de vista dos subsídios garantidos a esta modalidade de geração quanto também das regras de acesso destes agentes ao sistema. A revisão de subsídio estabelecida pela Lei nº 14.300/2022 (arts. 17, 26 e 27) parece não ter sido suficiente para conter o avanço descoordenado deste modelo de geração. O mesmo ocorre com o problema da falta de capacidade de conexão de novos projetos de micro e minigeração distribuída. A normatização do marco legal da GD não foi capaz de equalizar a complicação causada pela escassez de infraestrutura para o atendimento da desmedida demanda por novas conexões ao sistema. O tema conta com tamanha relevância que foi endereçado pelo ONS no PAR-PEL 2023, referente ao ciclo 2024-2028, como assunto estratégico do planejamento do setor elétrico. Segundo o ONS, o cenário atual é de
“crescente demanda por acesso de agentes geradores (UFV e EOL)”, porém, com “esgotamento físico da capacidade de escoamento do sistema”. O ONS ainda destaca que o atual modelo de acesso ao sistema, que adota o critério de ordem cronológica, possui duas características evidentemente negativas. A primeira é a ineficiência alocativa, pois os projetos com maior viabilidade técnico e econômica não necessariamente terão prioridade de conexão sobre aqueles com menor viabilidade. A segunda é a morosidade em si, tendo em vista que todas as solicitações de acesso precisam ser analisadas individualmente. Dentre as soluções aventadas pelo ONS, uma delas consiste na realização de “leilões por barramentos”, para eliminação das filas de acesso.
Os efeitos de eventual colapso do serviço de distribuição de energia elétrica são de proporções catastróficas. Não atingirá apenas os consumidores de baixa renda, mas sim todos os usuários do sistema de distribuição – inclusive aqueles que utilizam a GD. Isto porque mesmo que os usuários da GD não “adquiram” a energia de distribuidoras, estes utilizam o sistema de distribuição tal como qualquer outro usuário. A preservação do equilíbrio econômico-financeiro das concessões de distribuição de energia, portanto, interessa a todos. Afinal, sem distribuição de energia, não há geração distribuída.
Por Canal Energia.
https://www.canalenergia.com.br/artigos/53267505/o-impacto-da-geracao-distribuida-nas-concessoes-de-distribuicao-de-energia