Para o historiador Jean-Baptiste Fressoz, investir em renováveis é decisivo, mas não uma panaceia, porque a passagem de um tipo de energia a outro não é algo simples.
Um dos principais esforços para responder ao desafio da mudança climática é a transição energética, que consiste em mudar a matriz de produção de energia, ainda em grande parte baseada em combustíveis fósseis como o carvão e o petróleo, para fontes renováveis que emitem menos CO2, como os painéis solares e as usinas eólicas.
De acordo com o historiador francês Jean-Baptiste Fressoz, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) da França, investir em renováveis é decisivo, mas a passagem de um tipo de energia a outro não é algo simples. As fontes se estimulam mutuamente, em vez de tomarem o lugar umas das outras, argumenta.
O historiador se refere a uma relação “simbiótica” entre as energias, já que a chegada dos motores a vapor aumentou o consumo de madeira e na era do petróleo o emprego de carvão se expandiu rapidamente. Ainda hoje, a produção de painéis solares, turbinas eólicas e carros elétricos continua a consumir petróleo, carvão e madeira.
Segundo Fressoz, que lançou neste ano pela editora Seuil o livro “Sans transition” (Sem transição), o avanço das novas tecnologias e fontes energéticas traz um enorme avanço na luta para reduzir a intensidade de carbono da economia. Sozinho, no entanto, não basta para reduzir a emissão total de gases de efeito estufa o suficiente para atingir a neutralidade até 2050, meta que os climatólogos consideram necessária para manter o aquecimento do planeta abaixo dos 2o C.
Para cumprir esse objetivo, será preciso escolher bem como usar o CO2 que persiste na economia. A escolha, diz o historiador, é questão de “sobriedade”, o que significa definir prioridades, sem depositar todas as fichas na nova matriz energética.
Fressoz é autor dos livros “O evento antropoceno” (publicado no Brasil pela Editora da Unicamp no ano passado), em parceria com o também historiador das ciências Christophe Bonneuil, e “L’Apocalypse joyeuse” (O alegre apocalipse, 2012), entre outros. Trechos de sua entrevista ao Valor:
Valor: O livro argumenta que o desenvolvimento de uma nova fonte de energia não substitui as já existentes, mas se soma a elas e estimula seu consumo. Por que isso acontece?
Jean-Baptiste Fressoz: A história da energia costuma ser contada pelo prisma da competição: como o carvão competiu com a madeira na siderurgia britânica do século XVIII, até substituí-la em torno de 1800; como o motor a diesel supera os motores a vapor etc. Essas ideias compõem um relato de grandes transições energéticas. A história também costuma analisar as energias em termos relativos. Não olha para o valor absoluto do que consumimos, nem a quantidade, por exemplo, de madeira que a Inglaterra queimou em 1900 ou 2000, mas para a parte da madeira no composto energético. É verdade que hoje, na Inglaterra, a madeira não corresponde a muito, se comparada aos fósseis. Mesmo assim, o país queima, em 2024, muito mais madeira do que no século XVIII.
Valor: O senhor se refere a uma “relação simbiótica” entre as energias. O que é essa relação?
Fressoz: Os historiadores tomam cada tipo de energia como uma realidade em si: carvão é carvão e ponto, madeira é só madeira. Na verdade, quando dizemos carvão, dizemos muitas coisas. Por exemplo, em 1900, para fazer carvão é preciso muita madeira. A Inglaterra em 1900 consumiu mais madeira para fazer a estrutura de apoio das minas de carvão do que queimou em 1750 ou 1800. Ou seja, consumiu mais madeira só para obter energia. Apesar disso, existem historiadores que falam de “saída da economia orgânica”. As energias são extremamente materiais e estão entrelaçadas entre si.
Valor: O mesmo ocorreu com o petróleo?
Fressoz: A história da transição do carvão para o petróleo é contada a partir do fato de que nas primeiras décadas do século XX se usava petróleo em motores de automóveis. Porém, na década de 1930, para fabricar um carro da Ford, eram necessárias sete toneladas de carvão. Isso corresponde a toda a massa de petróleo que esse carro vai queimar circulando. E o petróleo é dependente do aço: nos tubos em que é extraído, nos navios, refinarias, motores. Para produzir aço, é preciso muito carvão. O petróleo estimula o carvão. Relações simbióticas como essa são inúmeras e fascinantes.
Valor: Essa relação persiste até hoje?
Fressoz: Sem dúvida. E o Brasil é um exemplo perfeito. A indústria siderúrgica brasileira a carvão vegetal é gigantesca quando comparada às dos principais países industriais do século XIX. Milhões de toneladas de aço são feitas com carvão vegetal no Brasil. Uma empresa como a Vallourec, por exemplo, que fabrica tubos para a indústria petrolífera, possui enormes plantações em Minas Gerais. A madeira serve para fazer o carvão, que faz o aço usado para extrair petróleo.
Valor: As inovações inovam menos do que pensamos?
Fressoz: A questão é outra. O que entendemos ao pensar na inovação como solução para problemas ambientais? O século XX foi extraordinariamente inovador. Mesmo assim, o uso de quase todas as matérias-primas cresceu. Então, por que falamos em transição? Porque confundimos dinâmica tecnológica e dinâmica material. É por isso que os políticos dizem que para enfrentar as alterações climáticas é preciso uma nova revolução industrial. Só que a revolução industrial trouxe a expansão generalizada do consumo material e energético. É que eles têm uma visão tecnológica da revolução industrial, então só olham para a introdução de novas máquinas. Houve tecnologias que se tornaram obsoletas, mas se olhamos para o fluxo de matéria, vemos uma história contínua de crescimento.
Valor: A existência de um imperativo moral e legal para a transição energética
poderia levar a um resultado diferente?
Fressoz: Tomara! Mas não devemos confundir querer e poder. Já houve avanços enormes na eficiência das máquinas. A passagem dos motores a vapor para os elétricos, entre 1900 e 1925 nos Estados Unidos, divide por dez a intensidade de carbono da força mecânica. Hoje, quando passamos das centrais a gás para um campo de painéis solares, dividimos a intensidade de carbono da energia elétrica por 12. Há um grande progresso atrás de nós. O que estamos fazendo com as energias renováveis é muito importante, mas não significa que temos uma transição energética. Na Inglaterra, por exemplo, desde 1880, houve uma enorme redução da intensidade de carbono da economia e o consumo total explodiu. É por isso que não podemos fantasiar sobre o que o progresso tecnológico permitirá fazer nos próximos 30 anos. Daqui até lá, deve ser possível interromper o crescimento das emissões. Mas isso é diferente de conseguir a neutralidade de carbono até 2050.
Valor: Reduzir a intensidade em carbono da economia não implica reduzir a
emissão total?
Fressoz: O barateamento das fontes sustentáveis, como solar e eólica, traz grandes avanços. Vamos reduzir principalmente as emissões da eletricidade. Mas é metade da batalha, ou seja, temos a tecnologia para reduzir as emissões à metade. Além disso, é duvidoso. Hoje, a principal questão é como descarbonizar os setores ditos “difíceis de reduzir” (hard to abate). Os mais difíceis são o cimento, o aço e a aviação. A agricultura também é um setor que emite muito. É isso que me impressiona quando dizem que vamos combater a mudança climática com painéis solares.
Valor: O senhor afirma que a ideia de transição é recente e está ligada ao esgotamento de recursos. A noção de esgotamento é equivocada?
Fressoz: Não é equivocada, mas o esgotamento envolve escalas temporais que nada têm a ver com o desafio climático. Quando contamos essa história direito, não faz sentido falar em transição. O medo do esgotamento dos combustíveis fósseis foi fomentado pela Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos, que argumentou que a transição para o nuclear era inevitável nesse país no século XXI. No resto do mundo, também seria nos séculos XXII ou XXIII. Diziam que o carvão seria tão caro que o nuclear seria mais competitivo. Hoje, reciclamos essa futurologia para falar da mudança climática, em que não faz sentido. Não temos um problema a resolver em três séculos, mas em três décadas. Um período em que há fontes fósseis em abundância e muito baratas.
Valor: Qual é o caminho a seguir?
Fressoz: As energias renováveis se desenvolvem rápido e a eletricidade emitirá menos. Mas ainda vamos precisar de uma certa reserva fóssil, porque armazenar eletricidade ainda será complicado. Devemos estabilizar as emissões até 2050. Certamente não chegaremos à neutralidade. E, para os setores difíceis, é preciso pensar em sobriedade e decrescimento. Temos que nos perguntar o que é aceitável fazer. Ainda haverá muito CO2 na economia em 2050. Onde ele vai ser usado? Em coisas úteis ou fúteis? Para construir trevos rodoviários nas metrópoles dos países ricos ou para criar infraestruturas vitais nos países pobres? É preciso questionar o nível de consumo e a distribuição do que produzimos, em vez de sonhar com a indústria siderúrgica a hidrogênio em escala global, algo improvável no prazo previsto. Criticar a transição não é criticar as energias renováveis. Mas é importante
perceber que esperamos mais do que elas podem oferecer.
Valor: Com os minerais usados em baterias e as terras raras, podemos ter um problema de esgotamento?
Fressoz: A questão não é se teremos lítio ou cobre suficiente para fabricar baterias. Tudo isso é muito abundante, embora em baixas concentrações e com enorme potencial poluidor. A questão é: que poluição aceitamos? E o mesmo vale para a energia renovável gerada. O que fazemos com ela? Se for para continuar fabricando carros enormes, qual é o interesse? Por mais que a intensidade energética diminua, continuaremos a lançar muito CO2 na atmosfera e causar muita poluição.
Valor: Em que consiste sua crítica ao Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas?
Fressoz: O IPCC foi criado para se contrapor ao Grupo Consultivo sobre Gases de
Efeito Estufa, que surgiu em 1986 após a publicação de um relatório de cientistas que estudavam o efeito-estufa. O relatório dizia que era preciso reduzir as emissões em 25% até 2000. Propunha um fundo climático global, financiado por um imposto de carbono nos países ricos e usado para custear a adaptação dos países pobres. Isso deixou o governo americano em alerta e, para esfriar os ânimos dos cientistas e internalizar a restrição econômica, ele promoveu o IPCC. Ali tem economistas, representantes de ministérios da Agricultura, da Energia, da Indústria etc. Os especialistas são nomeados pelos governos. São três grupos de trabalho. Um trata da climatologia, o segundo dos impactos da mudança climática e o terceiro das medidas a tomar. No início, os grupos dois e três são presididos por céticos do clima, o russo Yuri Izrael e o americano Robert Reinstein.
Valor: Reinstein também esteve na Conferência do Rio em 1992.
Fressoz: Sim. O presidente George Bush [pai] e seu chefe de gabinete, John Sununu, instruíram Reinstein a não aceitar um tratado que obrigasse a reduzir emissões ou transferir recursos para países pobres. A frase foi clara: “sem metas, sem dinheiro; jogue a carta da tecnologia”. Isso fazia sentido para os EUA dos anos 1990. Eram os maiores emissores e a maior potência tecnológica, com a capacidade de dizer: vamos achar soluções para todos os problemas. Depois, Bush discursou falando em “efeito Casa Branca” (Whitehouse effect) como solução para o efeito estufa (Greenhouse effect). Desde essa época, o grupo 3 tem uma abordagem
hipertecnológica.
Valor: Hoje, a abordagem ainda é essa?
Fressoz: A primeira vez que falaram em sobriedade foi em 2020. Usaram o termo “sufficiency”. Em 2014, ainda falavam em fusão nuclear. Só que mesmo se houver um reator de fusão comercial em 2050, não vai mudar nada para o clima. Ultimamente, o que tem aparecido é a ideia de emissões negativas, ou seja, captura de carbono. No último relatório, a quantidade de carbono que seria preciso armazenar até 2100 corresponde a várias vezes a produção mundial de madeira. Fala-se em usar bioenergia e capturar o CO2 na saída das chaminés, para enterrar em seguida. Mas isso não faz sentido, não é competitivo. Em 2008, falavam de criar lagos de CO2 líquido no oceano, a 6 mil metros de profundidade.
Valor: O surgimento do termo “sufficiency” é um bom sinal?
Fressoz: Eu me diverti contando palavras. Nas 2.900 páginas do último relatório, a palavra transição aparece 2.700 vezes. Está em quase todas as páginas. Já “suficiência” consta 200 vezes. Decrescimento, 20 vezes. Não é um projeto levado a sério.
Valor: A Comissão Internacional de Estratigrafia decidiu que o Antropoceno não existe. Quão importante é essa decisão?
Fressoz: É simbólica. O Antropoceno não é uma descoberta científica, mas uma forma de dizer: nosso impacto no planeta é visível na escala de tempo geológico. Se digo que o número de partes por milhão de CO2 na atmosfera passou de 280 para 420, ninguém se importa, não significa nada. Se digo que nunca houve tanto CO2 no ar em 3 milhões de anos, entendemos que a humanidade fez algo sério com o planeta. É uma pena os geólogos não terem aceitado isso. É uma oportunidade perdida para a geologia se redimir da sua função de origem, a prospecção de combustíveis fósseis. Mas a palavra Antropoceno segue seu caminho. Em vez de uma era, os geólogos dizem que o Antropoceno deve ser chamado de acontecimento, como o meteoro que matou os dinossauros.
Valor: Como parece a questão terminológica, em que a noção de Antropoceno é criticada por se referir a toda a humanidade, não só às efetivas causas do abalo climático?
Fressoz: Já me interessei mais por essa questão, mas vale a pena chamar atenção para a origem neomalthusiana da noção de Antropoceno. A questão malthusiana sempre foi central no mundo anglo-saxão. Nas décadas de 50 e 60, os principais textos ambientais eram neomalthusianos. A questão-chave era o crescimento populacional, especialmente nos países pobres. O Antropoceno é um eco distante dessa visão da crise ambiental que envolve a espécie humana como entidade biológica, mas para um momento em que o verdadeiro problema é a acumulação ligada aos combustíveis fósseis e às grandes infraestruturas. Não é só o crescimento populacional. A crítica que procura não culpar a espécie como um todo teve esse ponto de partida. Ela é válida.
Por Valor Econômico.
https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2024/08/11/mudar-a-matriz-energetica-e-essencial-mas-nao-o-suficiente-para-dissipar-a-ameaca-climatica-diz-especialista-frances.ghtml