Mudanças climáticas dificultam planejamento do setor elétrico

Geração por fontes renováveis cresce, mas imprevisibilidade do clima torna diversificação da matriz mais complexa.

As fontes renováveis de energia representam mais de 90% da geração brasileira, segundo dados do Centro de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Mas, como as hidrelétricas respondem por cerca de dois terços dessa produção, o sistema sofre uma pressão extra por conta das mudanças climáticas, que já afetam o planejamento do setor.

Em 2024, até agosto, na operação centralizada do Sistema Integrado Nacional (SIN), a água foi responsável por 69,2% da eletricidade gerada, os ventos por 15,1%, enquanto biomassa e solar contribuíram com 4,2% cada uma. Termelétricas movidas a combustíveis fósseis e energia nuclear também integram a matriz energética.

A capacidade instalada de todo o setor é de 225.388 MW, segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). E vai crescer. “Somados os empreendimentos que já foram construídos desde janeiro, devemos encerrar 2024 com 293 novas centrais de geração solares, eólicas, hidrelétricas e a biomassa, que somam 10.711 MW de capacidade instalada”, afirma Alexandre Ramos, presidente do Conselho de Administração do CCEE. “O Brasil é um celeiro de energia renovável.”

O país tem a geração elétrica baseada na hidrelétrica e a diversificação da matriz começou nos anos 2000. “Nós continuamos extremamente vulneráveis e suscetíveis à disponibilidade de chuvas e de água para gerar eletricidade”, diz Rodrigo Sauaia,
presidente-executivo da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar). “Isso é preocupante. É importante seguir diversificando a matriz elétrica brasileira, porque o clima já está mudando.”

Estudo realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostra que, de 1960 a 2020, a média de dias secos consecutivos passou de 80 para 100. E a duração das ondas de calor subiu de sete dias para 52 dias ao longo de um ano. Os
resultados, segundo Lincoln Alves, pesquisador responsável pelo estudo, mostram que o clima já mudou por conta do aquecimento global.

“O que se pensou nos anos 1970/1980, em termos de planejamento setorial, com usinas hidrelétricas para aproveitar o potencial hidráulico do país e térmicas, acabou”, resume Alexandre Bueno, sócio-fundador da Sun Mobi, que atua na geração de energia solar compartilhada. “Os extremos climáticos (chuvas intensas e secas prolongadas) são grandes desafios para o setor de energia e a demanda é por uma adaptação no planejamento e na regulação”, diz.

“Eu percebo que a dinâmica das mudanças climáticas que nós estamos vivenciando vai dificultar ainda mais o planejamento”, diz Guilherme Lockmann, sócio-líder da consultoria Deloitte para sustentabilidade e o segmento de Power, Utilities & Renewables. Ele cita o exemplo do leilão de transmissão realizado no dia 27 de setembro, que teve um lote retirado do certame para novos estudos, pois o traçado original das linhas passaria por áreas que sofreram com as inundações no Rio Grande do Sul. “Há uma análise histórica de onde há mais meses de sol, onde existe maior incidência de ventos e começa a haver mudanças nesses dados, que servem
para compor sua capacidade de entrega de energia.”

CEO da Pontal Energy, Gustavo Ribeiro concorda: “Nós temos alguns modelos previsores de ventos, e naturalmente geração de energia, e eles estão muito erráticos. Nunca vi um modelo errar tanto por ‘N’ mudanças climáticas, seja pelo El Niño, seja pelo La Niña, e vários outros componentes”, afirma. “Está muito difícil prever o vento.”

Atualmente, o segmento eólico sofre uma queda na demanda. “A indústria de energia eólica está vivendo a sua maior crise”, afirma Elbia Gannoum, presidente-executiva da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica), lembrando que esta

será a primeira inflexão após 15 anos de crescimento. De acordo com ela, 2022, 2023 e 2024 não foram bons para a contratação de energia. Pesaram contra o baixo crescimento do país (exceto em 2023) o baixo preço da energia e a concorrência da geração solar distribuída. Mas ela considera que a situação já dá sinais de melhora e, em dois anos, os resultados positivos devem começar a aparecer.

As empresas seguem acreditando em um quadro positivo no longo prazo. E agora, com a adoção da bandeira tarifária vermelha e o consequente aumento das contas de luz, poderá haver um incentivo à migração. “Focamos o alto potencial que o Brasil tem de liderar a transição energética, com oportunidades de eletrificação, hidrogênio verde, além da abertura de mercado, que irá proporcionar o poder de escolha ao consumidor e abrirá portas para o aumento das fontes renováveis”, afirma o CEO da Vestas Latam, Eduardo Ricotta.

No setor fotovoltaico, o quadro é mais favorável. “Temos observado que o mercado livre tem acelerado, ainda há muita gente para migrar”, diz Bueno, da Sun Mobi, referindo-se ao consumidor de varejo. Em relação à geração compartilhada, segundo ele, o segmento tem atraído cada vez mais players e crescido de forma agressiva. No entanto, o executivo aponta que o limite de 5 MW para as fazendas solares limita o número de clientes e o crescimento do mercado.

Ao mesmo tempo, a transmissão é alvo de críticas. “É preciso melhorar muito a estrutura de transmissão”, diz Bruno Riga, head da Enel Green Power Brasil. “É verdade que existe um plano de longo prazo de melhorar a infraestrutura de transmissão, mas é preciso sincronizar o desenvolvimento de linha de transmissão com o desenvolvimento de eólico e solar”, diz.

O governo fez dois leilões de transmissão neste ano. O prazo para entrada em operação de novas linhas gira em torno de sete anos. A presidente da ABEEólica, no entanto, afirma que a questão é conjuntural, e não estrutural, mesmo reconhecendo atrasos na entrega de algumas linhas. Hoje, segundo ela, o Nordeste, onde há grande quantidade de projetos eólicos e solares, não consegue escoar toda a produção de pico para o Sudeste. “Então, por questões operativas, o ONS pede a alguns parques para desligar suas máquinas”, diz.

Para o setor, o uso de baterias precisa ser regulamentado para proporcionar flexibilidade ao sistema e evitar cortes temporários de operação. O primeiro leilão de sistemas de armazenamento deve ser realizado em junho do próximo ano.

Por Valor Econômico.
https://valor.globo.com/publicacoes/especiais/revista-sustentabilidade/noticia/2024/10/31/mudancas-climaticas-dificultam-planejamento-do-setor-eletrico.ghtml

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