Avanço das fontes limpas na matriz elétrica brasileira cria oportunidades e impõe o desafio de expandir o sistema de forma equilibrada.
Com uma matriz elétrica em que as fontes limpas representam mais de 80%, abundância de recursos hídricos, sol e vento e a capacidade de gerar energia elétrica 24 horas, sete dias da semana, sem poluir a atmosfera, o Brasil sediará no próximo ano a COP30, em Belém (PA), com a ambição de liderar as discussões da transição energética global.
Oportunidades, como o hidrogênio verde e a atração de datacenters globais, convivem com desafios. O avanço das fontes renováveis, como usinas eólicas e solares, amplia a complexidade da operação, traz questões a serem resolvidas em relação a subsídios futuros e a necessidade de revisão do modelo setorial, que completou duas décadas neste ano. O desafio também será pensar a evolução da
regulação sob o contexto das mudanças climáticas e seus efeitos sobre a operação do sistema.
O avanço de fontes que dependem de fatores climáticos, como sol e vento, e não podem ser despachadas pelo operador a qualquer momento, cria uma série de dificuldades, como a importância de um sistema de precificação mais aderente à realidade da operação e consumo e à valorização dos atributos das fontes. As hidrelétricas e térmicas podem, por exemplo, ser acionadas quando o sol não está mais no horizonte, tendo outras funções além da geração de eletricidade.
“Ganham importância quando país precisa despachar eletricidade em alguns momentos de forma rápida e confiável”, diz o presidente da Siemens Energy, André Clark. Isso abre a possibilidade de contratação de reserva de potência, espécie de folga para que o sistema possa atender com velocidade demandas extremas e rápidas, seja para destravar investimentos em aumento de capacidade hidrelétrica e
térmica, seja para abrir espaço para novas tecnologias como baterias. “O recurso escasso não é mais energia, e, sim, flexibilidade ou potência”, destaca o ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) Edvaldo Santana.
O sistema de precificação exigirá atualização. Quando o sol para de brilhar, no fim da tarde, se verifica a queda da geração solar e um aumento da carga, já que as quase quatro milhões de instalações de geração distribuída solar deixam de gerar e passam a consumir. No jargão do setor, assiste-se a uma rampa, como se milhões de aparelhos de ar-condicionado e chuveiros fossem ligados ao mesmo tempo. Essa rampa chega em alguns momentos a 33 GW de capacidade – cerca de um terço da potência usada. Estima-se que possa chegar a 50 GW em 2027, segundo projeções do Operador Nacional do Sistema.
“O preço da energia às 14 horas não é o mesmo das 18 horas, é preciso remunerar essa rampa. Quem vai dar essa resposta sistêmica?”, questionou em recente evento o diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica, Ricardo Tilli, que ressaltou ser preciso que o sistema de formação de preços trabalhe com sinais de mercado. Fazer o consumidor também perceber que os preços mudam conforme a demanda,
horário e dias de semana é outro ponto a ser levado em conta. O tempo de resposta é alto.
Hoje o país tem cerca de 90 milhões de medidores no mercado atendido pelas distribuidoras, mas essa massa de consumidores ainda não sente imediatamente as oscilações de demanda e oferta. “Cerca de 60% da carga do país não sente volatilidade e recebe um reajuste anual nas tarifas”, diz o professor da Universidade de São Paulo Erik Rego.
“O consumidor cativo precisa ter mecanismos para responder mais eficazmente à demanda. É preciso avançar na tarifa horo-sazonal na baixa tensão”, afirma o presidente da CPFL Energia, Gustavo Estrella. “O modelo de 2004 não mexeu na questão estrutural da formação de preço e não revisou a garantia física das hidrelétricas, que são a base do sistema. De outro lado, não se buscou dar ferramentas para a gestão de demanda dos consumidores”, diz a presidente da Associação Brasileira da Energia Eólica (Abeeólica), Élbia Gannoum. O impacto das mudanças climáticas será variável cada vez mais relevante.
“A dinâmica mudou. No ano passado, o Rio Grande do Sul enfrentou 13 grandes tempestades. Isso cria o desafio de pensar a resiliência das redes sobre essas condições”, diz Estrella. O desafio será fazer esses investimentos caberem no bolso dos consumidores. Em São Paulo, em novembro de 2023, lembra Estrella, velocidade dos ventos atingiu valores próximos a recordes históricos com uma abrangência
geográfica jamais vista. “Se eventos como esses forem mais frequentes, e tudo indica que serão, o foco dos investimentos precisa se adaptar. Todas estas ações para garantir o suprimento neste novo anormal climático implicam custos e, para isso, será importante criar uma ‘folga’ tarifária para que os consumidores, já muito sacrificados, possam absorvê-los. Serão muito importantes as opções de
financiamento para deixar estes investimentos mais acessíveis aos consumidores finais”, diz o presidente da PSR, Luiz Barroso.
Operar, planejar e regular serão essenciais nessa complexidade crescente da matriz. Hoje, o setor convive com um imbróglio regulatório: cortes de geração renováveis, chamados no jargão de “curtailment”. “Dentre as principais razões para o crescente ‘curtailment’ no Brasil estão os subsídios excessivos para as renováveis centralizadas e à geração distribuída. Considerando que as fontes renováveis já são as mais
competitivas na implantação de novos projetos de geração de energia, a solução deste imbróglio da geração passa por um indispensável empenho para a readequação das distorções geradas pela extensão de subsídios que não são mais necessários ao setor, beneficiando exclusivamente aqueles que têm amplo acesso ao capital, enquanto as classes menos privilegiadas pagam a conta destes subsídios por meio dos encargos na conta de luz”, observa Eduardo Sattamini, CEO da Engie Brasil Energia.
A revisão do modelo coincide com as oportunidades. “Com a chegada de instituições financeiras, players globais no setor e as privatizações, o Brasil tem a possibilidade de criar um mercado de atacado maduro, com a criação de uma contraparte central e da abertura de derivativos no futuro, além da criação de novos produtos com os desafios que a diversificação da matriz traz ”, afirma Dri Barbosa, CEO da N5X,
plataforma para compra e venda de energia no Brasil. Com uma matriz calcada em fontes renováveis, o país poderá ainda atrair grandes data centers e se tornar um polo de produção de hidrogênio verde.
Por Valor Econômico.
https://valor.globo.com/publicacoes/especiais/energias-renovaveis/noticia/2024/08/30/fontes-limpas-sao-vitrine-para-a-cop30.ghtml