Demora na divulgação de relatórios e explicações incompletas politizam discussão técnica, afirmam especialistas.
Demora na divulgação de relatórios e explicações incompletas deram ao apagão que afetou 25 estados e o Distrito Federal nesta terça-feira (15) contornos políticos inesperados para um tema normalmente técnico.
A falta de clareza abriu espaço para lobbies e guerra de narrativas que estão se voltando até contra o próprio ONS (Operador Nacional do Sistema).
Pelo protocolo, ele deveria ter apresentado na manhã desta quinta-feira (17) o Bise (Boletim de Interrupção do Suprimento de Energia). O documento não foi divulgado até a publicação deste texto.
O rito de divulgações já havia sido quebrado na terça. O ONS deveria ter publicado as primeiras informações até duas horas após a queda de luz dentro IPIE (Informe Preliminar de Interrupção do Suprimento de Energia). O documento veio em partes. Um texto saiu às 18h, quase 10 horas após a falha. Outra notificação saiu na quarta-feira (16).
O consolidado foi divulgado nesta quinta-feira (17) às 19h30. Nele, o ONS avisa que o RAP (Relatório de Análise da Perturbação), que é concluído em 30 dias, vai levar 45 desta vez.
O que se sabe até agora é que o chamado evento zero, que deu início ao apagão, ocorreu numa linha de transmissão entre o município de Quixadá e a capital Fortaleza. A frequência da linha caiu e o sistema de proteção falhou, disseminando a falha. Um incidente do gênero, num ponto como este, porém, não deveria deflagrar um apagão com escala nacional.
Na falta de detalhes, um ala de especialistas afirma que ainda vão descobrir que houve falha em alguma subestação, como Imperatriz (MA) ou Xingu (PA). Outro segmento, mais ligado a hidro, já cogitam que o próprio ONS pode ser parte do problema.
No mapa da produção nacional de energia elétrica, o ONS define quem gera e quanto gera. Há alguns meses, ele privilegiava as renováveis, especialmente eólicas, mesmo com os reservatórios de hidrelétricas cheios. As imagens de água sendo vertida das usinas chegaram a render lindas imagens.
É preciso destacar que a decisão é defensável pelo aspecto ambiental e financeiro, pois são fontes que aproveitam vento e sol com custos baixos. No entanto, existe um outro componente que precisa ser considerado na organização do mix de fontes. A estabilidade do sistema.
Usinas fornecem três elementos: elétrons, que chamamos de energia elétrica, mas também frequência, que deve ser de 60 hertz constante, e tensão, de 220 volts igualmente constante. O que garante essa estabilidade é o que a física chama de inércia.
Térmicas ajudam a dar estabilidade. Parques eólicos podem até ter sistemas que simulam o mesmo efeito. Mas a garantia mais firme, explicam engenheiros ouvidos pela reportagem, é fornecida principalmente pelos motores girantes das hidrelétricas.
Especialistas disseram à Folha que, ao ampliar em demasia as eólicas na composição do fornecimento nacional, o ONS pode ter reduzido a segurança do sistema. Isso explicaria como uma falha pontual numa linha tão marginal no Ceará alastrou-se e levou a um apagão de escala nacional.
Apenas a investigação detalhada poderá afirmar a responsabilidade do órgão, mas no dia seguinte ao apagão, justamente para dar mais estabilidade ao sistema, o ONS reduziu a produção de eólicas no Nordeste, bem como o envio dessa energia para o Sudeste (veja infográfico).
Procurada pela reportagem para comentar, o ONS disse que está apurando todas as possibilidades.
Os especialistas afirmam que não está em discussão reduzir o avanço das renováveis, mas encarar um debate mais organizado sobre como gerenciar o sistema elétrico nacional numa nova realidade.
Enquanto isso não ocorre, ganham força várias versões envolvendo eólicas no apagão que tratam de pane por excesso de produção, súbita falta de ventos e até queda de torres.
“Não teve problema na geração, e podia ser eólica, carvão ou nuclear que dava no mesmo”, afirma Élbia Gannoum, presidente da ABEEólica (Associação Brasileira de Energia Eólica).
“Tem gente tentando aproveitar a situação para colocar a culpa na eólica e facilitar os projetos de lei no Congresso com jabutis para encher o país de térmicas. Isso eu não vou admitir. Acabou a brincadeira.”
Para quem dissemina a ideia de sobrecarga dessa fonte, ela afirma que no dia 4 de julho a geração eólica atingiu a marca de 19 GW (giga-watts), bem mais que os 16 GW registrados no dia do apagão.
O deputado Danilo Fortes (União-CE) foi ao Ministério de Minas e Energia para entender a situação das eólicas. Defensor do setor, trouxe de volta para mesa a antiga discussão sobre falta de linhas de transmissão para escoar a produção.
“Mas mais de um ano que eu falo que precisamos ampliar o sistema”, afirmou.
Os defensores de térmicas também entraram em campanha nos últimos dias. Logo após o apagão, a Abegás, associação que representa as distribuidoras de gás canalizado, disse que a ocorrência “reforça a importância de investimento em fontes de energia constantes e resilientes”.
“É o caso das termelétricas movidas a gás natural”, concluía o texto.
Candidato a presidir a Petrobras no governo Jair Bolsonaro (PL), o consultor Adriano Pires escreveu em uma rede social que a lição do apagão é que “não devemos abrir mão de térmicas”:
“Nesse momento de transição energética é uma estupidez ficar refém da natureza com a geração eólica e solar”, escreveu.
A crítica geral recai sobre o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, que virou o porta-voz do blecaute e politiza a discussão. Os técnicos sumiram. Na coletiva à imprensa na terça-feira, o secretário de Energia Elétrica Gentil Nogueira mal conseguiu se manifestar. A palavra não foi passada ao diretor-geral da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), Sandoval Feitosa, nem ao representante do ONS.
Na maior parte do tempo, o ministro criticou a privatização da Eletrobras, alinhando o discurso com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Desde a campanha, ele avisa que é contra a privatização. A AGU (Advocacia Geral da União) tem uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) no STF (Supremo Tribunal Federal) reivindicando que a União tenha poder proporcional ao seu número de ações ordinárias.
Na quarta, Silveira conversou com jornalistas na porta do ministério para confirmar que a falha inicial ocorreu numa linha da Chesf, subsidiária da Eletrobras, mas ainda sem dar detalhes. Disse que continuariam investigando um segundo evento e que era importante manter a Polícia Federal no caso. Na sequência, Luiz Carlos Ciocchi, diretor-geral do ONS, falou que haviam descartado um segundo evento, o que gerou mais confusão.
Foi um dia de ofensivas à Eletrobras. Antes mesmo de o ministro confirmar a propriedade da linha, a PGR (Procuradoria-Geral da República) se manifestou a favor da ADI do governo no STF e sugeriu que as partes tentassem negociar. Ao mesmo tempo, a Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor), do Ministério da Justiça e Segurança Pública, notificou a empresa para explicar a falta de energia.
A economista Elena Landau, especialista em energia, lembra que a Eletrobras tem 23% da capacidade geradora instalada no país e cerca de 40% do total das linhas de transmissão.
Quase todos os apagões registrados na história recente do país envolveram linha de transmissão, subestação ou equipamento da empresa, só que agora ela está privatizada. Ela diz que o governo usa uma falha menor como desculpa para pressionar a companhia.
“Quem fala de apagão é técnico, mas tudo ficou misturado porque o ministro teve um péssimo comportamento na coletiva. O governo podia ter quatro assentos no conselho que o apagão seria igual, porque não tem nenhuma relação com a privatização”, afirma ela.
“Eles falam que a empresa é estratégica para o setor. Estratégico na cabeça de político é obra. O problema é que o governo perdeu o controle de como usar os recursos da Eletrobras e não pode colocar os R$ 70 bilhões de investimentos privados da empresa no PAC [Programa de Aceleração do Crescimento].”