Causa raiz do apagão foi a inadequada estrutura de governança, que prestigia a dispersão de responsabilidades
Você compraria um avião produzido na Venezuela ou em Cuba? Provavelmente não. Não confiaria na estrutura de certificação da
aeronave. Também não adquiriria um paraquedas fabricado no Afeganistão ou na Síria. Ou você confiaria no Talibã e no ISIS, que têm no suicídio uma poderosa arma de aterrorizar?
No dia 11 de novembro de 2020, no Valor (Saliva, pólvora, apagão e lágrimas), afirmei que “o apagão do Amapá era previsível. Era também evitável. A topologia da rede exigia monitoramento constante, como um drone 24 horas a sobrevoar a subestação. Mas a função de monitorar ficou propositalmente dispersa”. E concluía: “a maior parte das fontes de ineficiência do setor elétrico decorre da estrutura de governança inadequada”. Nada mudou.
Comecei no setor elétrico em 1975. Movimentos relevantes, como a entrada em operação de uma usina e subestação (SE), ou uma simples ampliação de quaisquer ativos importantes, exigiam a presença e a aprovação dos projetistas, fabricantes e, em especial, do despacho de carga, denominação antiga do operador da rede. Só depois de todas essas etapas, conhecidas como comissionamento, a obra era autorizada a operar. Testávamos todos os equipamentos de proteção e suas interfaces. Olhávamos quase todos os fios. De onde vinham e para onde iam.
O Operador Nacional do Sistema (ONS), na preliminar do relatório de análise da perturbação (RAP), que elucida o apagão, confirmou que controladores de tensão, existentes nas eólicas e solares daquela região, tiveram desempenho muito aquém do prometido nos respectivos projetos. Eram quase “gatos”, e não “lebres”.
Era um problema de certa forma elementar. Mas será que a operação do sistema e a infraestrutura regulatória tinham a exata noção da importância dos controladores de tensão, que substituiriam, na função, equipamentos das tradicionais hidro e termelétricas? Quem olhou, testou e atestou se tais dispositivos atendiam às exigências técnicas? São preocupantes as respostas a essas duas questões.
É inacreditável que os detentores das outorgas das eólicas e solares envolvidas, responsáveis pelos equipamentos, não informaram ao ONS ou à Aneel que, por não terem sido
efetivamente testados, era duvidosa a performance dos controladores de tensão.
Atualmente, pelo Procedimento de Redes, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que também aprova tal Procedimento, é quem autoriza a operação comercial de usinas, LT e SEs. Para isso, recebe do ONS um documento que informa pendências, impeditivas ou não, e recomenda ou não a operação. Mas ninguém, do operador ou da Aneel, comparece à instalação. É tudo na
confiança do concessionário, que confia no fabricante, que confia em quem construiu, que confia nos montadores e segue a vida.
Tudo bem. Não tem mesmo como comparecer a milhares de obras e ativos pulverizados. Mas não é razoável confiar apenas nas especificações técnicas ou nos modelos matemáticos entregues pelas usinas e fabricantes. Ninguém certifica um avião só pela fotografia e a qualificação dos fabricantes de cada componente ou de quem o vai pilotar. Os equipamentos, sobretudo os
essenciais ou críticos, precisam ser testados, validados, certificados e monitorados.
Alguém pode perguntar: mas não é assim também no setor elétrico brasileiro? Por que não? Na prática, no apagão de 15 de agosto, é como se um avião tivesse caído porque ninguém inspecionou e validou periodicamente a maneabilidade do profundor -parte móvel, pequena, que serve para subir ou baixar o nariz do avião. A abertura da LT, insignificante em relação ao aparato de geração e transmissão na área da ocorrência, empurrou o “nariz” do setor elétrico para o solo, num verdadeiro colapso.
Contudo, pela natureza da falha, muito elementar, repito, pode-se desconfiar de outras duas causas, que não estão, nem poderiam, na preliminar do RAP. Começo com a menos provável. O ONS, tampouco a Aneel, não se deu conta que os controladores de tensão são partes integrantes do sistema elétrico de potência – como os profundores, numa aeronave, e um paraquedas de reserva, para o paraquedista.
São equipamentos principais, e não acessórios ou penduricalhos. Só essa infeliz falta de atenção explicaria porquê não foram tomados os cuidados necessários para proteger o sistema de uma perturbação que aconteceria, só não se sabia quando. E, mesmo que estivessem atentos ao caráter estratégico desses dispositivos, o que é muito provável e esperado, seria impossível identificar de quem era a responsabilidade por monitorá-los. É uma atribuição do ONS, que os atestou com base em modelos matemáticos e em parecer da própria operadora do parque? Ou é da Aneel, que fiscaliza todos os agentes e acreditou no parecer do ONS? Na governança atual, a atribuição é propositalmente difusa, como no Apagão do Amapá.
E é inacreditável que os detentores das outorgas das eólicas e solares envolvidas, responsáveis pelos equipamentos, também não informaram ao ONS ou à Aneel que, por não terem sido efetivamente testados, era duvidosa a performance dos controladores de tensão. Ninguém, até agora, mostrou uma requisição de testes nem os resultados deles.
O apagão era, assim, evitável. Testes periódicos indicariam a necessidade de ajustes ou substituição dos equipamentos inadequados. E era também previsível. Como não existia uma certificação do desempenho efetivo desses dispositivos, não era difícil identificar tamanha fragilidade e impor correções.
Do ponto de vista do que representariam os controles de tensão, o sistema, percebendo ou não, estava vulnerável. Confiava num “paraquedas talibã” ou não tinha paraquedas reserva ou não conhecia o funcionamento dos profundores. Foi ao chão.
Ainda assim, a causa raiz do apagão não foi a atuação acidental de uma lógica de proteção, muito menos os ineficazes controladores de tensão. Mas a inadequada estrutura de governança, que prestigia a dispersão de responsabilidades.
E novos apagões estão em curso? Sim, infelizmente. E em pontos bem mais evidentes e sensíveis que os controladores de tensão, que estavam longe de fazer parte da lista dos 50 pontos de atenção do sistema elétrico.
Por Valor Econômico.
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/apagao-era-evitavel-pois-previsivel.ghtml