O curtailment é um risco do negócio e não do consumidor.
Nos dias 22 e 23 de outubro participei de dois ótimos eventos simultâneos: o Energy Solutions Show e o Brazil Windpower. Impressiona o potencial da cadeia de produção da eólica, desbravadora do segmento de fontes renováveis variáveis (FRVs), responsáveis, desde 2021, por 90% da expansão da capacidade de geração de eletricidade. Um impulso para a transição energética.
Em tais eventos, eram perceptíveis os esforços dos grandes consumidores para reduzir seus custos. A estratégia usual implica, porém, maximizar a entrada de recursos via subsídios e isenções fiscais. Por isso, investem em FRVs e aderem à autoprodução, já uma mania. Estão corretos. Aproveitam a lei e suas brechas.
Há não mais que 36 meses esse tipo de autoprodução, que é um contrato de compra de energia desenhado para contemplar ações ordinárias e preferenciais de uma usina, era uma anomalia. Mas um “jabuti”, com nome e endereço, legalizou o
jeitinho.
O consumidor de médio porte (shopping centers e grandes redes atacadistas e varejistas) tem na eficiência e no uso racional da eletricidade a principal forma de redução dos custos. Mas, de olho nos subsídios, adquirem energia de FRVs e não descartam a atuação como autoprodutores.
Mas os debates nas diferentes sessões dos eventos eram dominados pelo curtailment, jargão que significa corte ou restrição de geração. Para o operador do sistema, o fenômeno teve origem em agosto de 2023, quando uma perturbação, em princípio insignificante, deixou 30% do Brasil sem eletricidade. Horas depois, descobriu-se que a amplitude da ocorrência foi determinada pela deficiência na operação de controladores de tensão dos parques eólicos e solares.
Desde então, por acurada precaução, o operador tem reduzido diariamente a geração de todos os tipos de fontes. Os custos já são da ordem do bilhão, e crescentes.
Mas o problema é mais abrangente. O curtailment acontece em sistemas elétricos com forte participação de FRVs. Por que é proporcionalmente maior no Brasil? Tive acesso aos dados de setembro e outubro. Os gráficos chocam. Mostram o que muitos não querem ver.
Os cortes seguem a curva de produção da geração distribuída ou descentralizada (GD). Assim, parte da energia que entra pela GD é reduzida na geração centralizada. E a restrição é maior ainda nos fins de semana e feriados, como nos dias 1, 7, 8, 15 e
22 de setembro. Nos dias 1 e 8, quase tudo que foi produzido na GD resultou em cortes das demais fontes.
O curtailment é, assim, o padrão, um figurino ou uma esperada característica dos sistemas elétricos contemporâneos, onde predominam as FRVs e a GD. É, por isso mesmo, um risco do negócio, e não do consumidor.
Já é real a agenda para repassar os custos desses cortes para os demais usuários da rede. Por enquanto, há resistência na Aneel, onde o pleito foi negado, e na Justiça, onde há inúmeros processos. Convencidos, os lobbies, como uma liga antipequeno consumidor, se agigantam, e costuram um novo “jabuti”, que dará conta do serviço.
Nos dois eventos, reparei nas pessoas que lá trabalhavam, como a mulher que, distante dos cercadinhos VIPs, empurrava o pesado carrinho com produtos de limpeza. E o homem, quase da minha idade, que limpava os banheiros masculinos. Quem preza para que essas pessoas não assumam riscos e custos que não são seus (subsídios, isenções e, agora, o curtailment)?
A resposta veio na semana seguinte, quando a Aneel discutiu os efeitos da Medida Provisória (MP) 1.212. A cerimônia de lançamento da MP, em abril, reuniu centenas de autoridades e entidades do setor elétrico para o que era uma boa iniciativa – reduzir em 3,5% a conta de luz. Foi capa dos grandes jornais no dia seguinte.
Dia 9 de abril, no Valor (“A insanidade (elétrica) institucional”), afirmei que a pretensa redução teria efeito contrário, e indiquei as razões. A MP propôs o pagamento antecipado dos empréstimos feitos em nome do consumidor para ressarcir as geradoras, transmissoras e distribuidoras por conta dos impactos da covid-19 e da escassez hídrica, mas escancarava o uso de subsídios desnecessários.
Poucos dias depois da edição da MP, um grupo de ótimos especialistas foi ao Planalto conversar com o Presidente da República. Embora fosse cristalino que a MP beirava ao grotesco, eis que o que (não) colocava com uma mão retirava (mais ainda) com a outra, optou-se pelo silêncio obsequioso.
Passados 180 dias, a constatação: tudo não passava de um capricho retórico. Os 3,5% viraram 0,02%, e grande parte dos consumidores, como os de Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba, Maranhão e outros, terá aumento, e não redução da conta de luz.
Procuram agora um culpado, um bode expiatório. Acham que o erro seria da Câmara de Comercialização, otimista nos cálculos, ou do Secretário de Energia, que teria concordado com a extravagância. Não penso assim.
Não veem que os 3,5% já estavam na Exposição de Motivos (EM) da MP: “Estima-se que a quitação antecipada dos empréstimos promoverá uma redução estrutural, em média, de 3,5% nas tarifas de todos os consumidores já em 2024 (…). A antecipação dos recebíveis (…) representa medida efetiva para a modicidade das tarifas”. É sempre boa notícia diminuir a conta de luz. Mas a redução, no caso específico, se concretizada, e não foi, não seria estrutural, tampouco efetiva para a modicidade, daí inoportuna. É que grande parte da EM foi ocupada com argumentos para aumentar os subsídios, estes, sim, efetivos, que elevarão a tarifa por mais 8 anos – pelo menos.
A MP 1.212 ficou conhecida como “Dilma 2”. Em 180 dias você entendeu o porquê. E, nessa nebulosa governança do setor elétrico, parece que foi designada a um bode expiatório a prerrogativa de zelar para que não sejam transferidos para os pequenos consumidores os riscos que não são seus. Deu bode!
Por Valor Econômico.
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-bode-eletrico-expiatorio.ghtml