Os pobres não serão beneficiados pela redução. A maior parte deles possui a tarifa social e, por isso, não paga os empréstimos associados às contas Covid e Escassez Hídrica.
O setor elétrico criou um axioma: mesmo que se saiba o que e como fazer, será feito errado. A Medida Provisória 1212, MP da conta de luz, é um exemplo.
A tarifa atual, das mais elevadas do mundo, para ficar em nível razoável deveria ser 30% menor. Faz sentido o empenho do governo para reduzi-la. Na cerimônia de lançamento da MP se falou muito nos pobres. Mas os pobres não serão beneficiados pela redução de tarifa. A maior parte desse universo de brasileiros possui a tarifa social e, por isso, não paga os empréstimos associados às contas Covid e Escassez Hídrica.
A redução da tarifa em 3,5% será sustentada por recursos de um fundo da privatização da Eletrobras, que serão usados para liquidar antecipadamente esses empréstimos. Mas quem serão os beneficiados?
A outra parte da MP cuida de estender por três anos o prazo para que as fontes renováveis variáveis (FRVs) acessem um subsídio que já é responsável por quase 14% da tarifa. O governo, com a MP, põe o investidor na corrida por mais subsídios.
Contudo, o custo de investir em eólica e solar reduziu mais que 50% nos últimos 10 anos, o que eliminaria a necessidade de subsídio. Em 2024, para cerca de 60 GW de eólica, solar, biomassa e pequenas hidrelétrica, o valor do subsídio é da ordem de R$ 10 bilhões. Como há mais 90 GW aptos à “corrida”, se 80% forem bem-sucedidos, na conta de subsídios serão adicionados R$ 12 bilhões.
Como quase 100% dos projetos estão no Nordeste, e o consumo no Sudeste, mais linhas de transmissão (LTs) serão construídas. Mais LTs, sem o aumento proporcional do consumo, fazem crescer o valor absoluto do subsídio. Exemplo.: se, em 2024, o subsídio, calculado como 50% do custo de transmissão, correspondia a R$ 14/MWh, pode chegar a R$ 20/MWh em 2029. Logo, quando as novas FRVs entrarem em operação o subsídio já não será R$ 12 bilhões, e sim R$ 16 bilhões ou até mais.
E, pelo menos até 2032, há uma sobra monumental de energia, entre 30 e 35 GW, a depender do nível médio de consumo num dia normal ou de muito calor. É um excedente que daria para atender à soma dos consumos do Nordeste e do Sul.
Sem a MP, as FRVs já adicionam 20 GW ao ano. O consumo cresce menos da metade disso. A MP, então, acelera muito o crescimento da oferta e eleva a sobra. Uma consequência é que o consumidor pagará por uma energia que não será gerada. E pagará também por uma expansão da transmissão que muito pouco será utilizada. Ponha mais uns R$ 2 bilhões nos custos da MP.
E a maior parte desses custos será alocada ao pequeno consumidor. Embora seja dito que o incentivo é para as FRVs, o grande consumidor do mercado livre, e só ele, que compra diretamente energia dessas fontes, tem direito a igual subsídio. Além disso, em virtude da sobra, o preço no mercado livre cairá mais ainda, o que beneficia novamente o grande consumidor.
E a MP acentua um grave problema estrutural. Todos os dias, entre 15 e 17 h, a geração solar cai de 28 GW para zero. Tudo isso, hoje, é substituído por hidrelétricas. Com a prorrogação do subsídio, esse volume, que seria 50 GW em 2029, passa para mais de 80 GW. Não haverá hidrelétrica suficiente para a substituição. Termelétricas serão necessárias. Assim, a MP desordenou mais ainda o setor elétrico e aumentou riscos e custos. E advinha quem pagará a maior parte disso?
Conclusão: o governo, com a MP, amplia a desigualdade elétrica. O Brasil tem tudo para liderar a transição energética, mas, insisto: no arranjo atual, a transição é rentável para o investidor, barata para quem dela se beneficia, mas é cara, injusta e perversa para os mais pobres.
Detalhe: o número da MP é 1212. No jogo do bicho, 12 é o grupo do elefante. O governo pôs na sala dois elefantes, mas bem ensinados.
*Edvaldo Santana, doutor em engenharia de produção e professor titular aposentado da Universidade Federal de Santa Catarina, foi diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica.
Por O Globo.
https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2024/04/mp-da-tarifa-amplia-a-desigualdade-eletrica.ghtml