Pasta de Minas e Energia lança programa nacional e quer levar projeto ao Congresso com definição de marco regulatório para uso do de combustível no país.
O Ministério de Minas e Energia (MME) prepara uma regulação para o mercado de hidrogênio verde – H2, obtido a partir da água, pela separação de hidrogênio e oxigênio pelo emprego de uma corrente elétrica. No fim de agosto, o MME lançou um plano trienal de trabalho (2023-2025) dentro do Programa Nacional do Hidrogênio (PNH2) que inclui, entre os pontos prioritários, a criação de um marco regulatório para o mercado de hidrogênio verde. O secretário nacional de Planejamento e Transição Energética, Thiago Barral, diz que o ministério planeja criar uma minuta sobre a regulação para encaminhar ao Congresso
Nacional com contribuições após consulta pública.
“O marco regulatório para o hidrogênio de baixo carbono vai definir a agência reguladora da cadeia, trará clareza para a taxonomia da indústria do hidrogênio e irá estabelecer quem vai creditar as agências certificadoras para trazer segurança jurídica e regulatória”, diz Barral em entrevista ao Valor.
O hidrogênio verde é apontado como alternativa de baixo carbono a combustíveis fósseis. Taxonomia é o termo que designa um sistema de classificação, identificação e categorização das atividades econômicas conforme critérios ambientais.
No Congresso, há mais de um projeto de lei sobre o tema, mas nenhum contempla os principais pontos apontados por especialistas ouvidos pelo Valor. O mais citado é o PL 725/22, do ex-senador Jean-Paul Prates, atual presidente da Petrobras. Ele define o que é o H2 de baixo carbono, estabelece a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) como reguladora e define percentuais mínimos obrigatórios de volume para a inclusão do hidrogênio nos gasodutos.
O projeto, contudo, deixa pontos-chave em aberto. “A produção, transporte e distribuição desse combustível apresentam desafios complexos, exigindo uma regulamentação clara e eficaz”, diz a professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Glaucia Fernandes, especialista em mercado de energia e regulação. “Precisamos de normas técnicas que definam os padrões de segurança, qualidade e eficiência.”
De acordo com Fernandes, além da definição do que é hidrogênio de baixo carbono e a determinação de qual será a agência reguladora da cadeia produtiva, a regulação deve passar pela criação de políticas econômicas e pela revisão da legislação sobre licenciamento ambiental. Hoje o licenciamento de plantas de hidrogênio ocorre na esfera estadual.
Em resposta às críticas de que o Brasil ficará atrasado ao não apostar todas as fichas na rota com zero emissão de carbono, o secretário Thiago Barral explica que o governo federal quis fugir desse debate. “A própria AIE [Agência Internacional de Energia] recomenda abandonar a linguagem de hidrogênio de cores, que só atrasa o desenvolvimento do mercado”, comentou (ver
quadro Aquarela H2, nesta página).
O Programa Nacional de Hidrogênio foca no desenvolvimento das rotas tecnológicas associadas à produção do hidrogênio de baixa emissão de carbono. Isso inclui produção não só a partir de fontes renováveis de energia (o chamado “hidrogênio verde”, gerado pela eletrólise a partir de fontes renováveis de energia elétrica, como solar e eólica), mas também por meio de combustíveis fósseis, com a captura, armazenamento e venda de carbono (“hidrogênio azul”).
O PNH2 prevê que os percentuais mínimos de emissões serão definidos na regulação e destaca isso como uma abordagem “pragmática” para não criar barreiras ao desenvolvimento do mercado. “O nosso foco é no hidrogênio de baixo carbono e não haverá, em hipótese alguma, o mesmo tratamento para um hidrogênio à base de gás natural. Quando falamos em ser inclusivos é no sentido de não excluir possibilidades de fazer o Brasil se tornar o país mais competitivo do mundo”, acrescenta Barral.
Diogo Lisbona, pesquisador do núcleo de estudos de Energia da Fundação Getulio Vargas (FGV), concorda que os caminhos de produção a partir de fontes fósseis com captura de carbono são importantes para ajudar a desenvolver a indústria ainda incipiente de hidrogênio renovável. “A estratégia nacional segue a de outros países que perseguem a rota verde por meio da baixa emissão de carbono. O essencial é entender o quanto de carbono há nesse processo e minimizar as emissões.”
Além do marco regulatório, uma das ações prioritárias do plano trienal é aumentar os investimentos anuais em pesquisa, desenvolvimento e inovação em hidrogênio de baixa emissão de carbono. O valor passará de R$ 29 milhões investidos em 2020 para R$ 200 milhões por ano até 2025.
O programa também estabelece três metas temporais: até 2025, busca instalar plantas-piloto de hidrogênio de baixo carbono em todas as regiões do país, até 2030 planeja situar o Brasil como o produtor mais competitivo de hidrogênio de baixo carbono do mundo, e até 2035, quer consolidar hubs de hidrogênio de baixo carbono no Brasil.
O Porto do Pecém, formado por uma joint-venture entre o governo do Ceará, que detém 70% de participação no empreendimento, e o porto de Roterdã, na Holanda, que detém os outros 30%, foi o primeiro hub de hidrogênio do país e também o primeiro a criar uma molécula de H2V em janeiro deste ano.
A potencial escolha da ANP como agência reguladora da cadeia do hidrogênio de baixo carbono não é unânime entre especialistas. Bruno Chedid, advogado da área de transição energética do escritório Mattos Filho, defende a ANP, uma vez que o hidrogênio tem uma cadeia semelhante à do gás, mas acredita que seria necessário criar uma área específica na agência para outorgar e validar os projetos de hidrogênio verde.
Ele observa, contudo, que a regulação vai exigir complementaridade entre outras agências reguladoras. “Escutamos comentários sobre conflito de competências, mas a cadeia produtiva do hidrogênio exige uma abordagem coordenada entre outros reguladores, como a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico e a Agência Nacional de Energia Elétrica”, indica.
A professora da UFRJ Glaucia Fernandes acredita que atribuir à ANP ajudaria a garantir a segurança energética e a competitividade do Brasil. “A ANP já regula atualmente a produção de hidrogênio a partir de fontes fósseis, como o gás natural”, observa.
A diretora-presidente da HL Soluções Ambientais, Laiz Hérida, critica a escolha da ANP. “A questão é até que ponto o hidrogênio verde será pauta prioritária. A agência já tem uma agenda regulatória desafiadora, e, quando se coloca tudo sob um guarda-chuva bastante carbonizado, dificilmente se consegue desenhar caminhos verdes.”
O diretor institucional da Associação Brasileira de Hidrogênio e Amônia Verde (ABHAV), Felipe Moura, observa que o regulador deve contemplar todas as finalidades do hidrogênio sustentável. “Não definimos uma posição sobre a criação ou não de uma nova agência, mas temos batido na tecla de não usar o hidrogênio apenas como combustível”, diz. “Muito se fala na aplicação para transporte, o que vemos com bons olhos, porque é um vetor para a transição energética, mas não podemos ignorar outros usos, como em fertilizantes, indústria siderúrgica e refino do petróleo.”
O preço do hidrogênio renovável ainda é visto como a principal barreira para investimentos mundo afora. Enquanto o custo de produção do hidrogênio verde americano vai de US$ 3,73 a US$ 6,50, o hidrogênio com gás natural varia de US$ 1,71 a US$ 2,18
por quilo, segundo estimativas da S&P Global Platts.
A regulação econômica, muito associada a incentivos, é um pilar para o desenvolvimento da indústria de hidrogênio com zero emissões, indica Michelle Hallack, especialista sênior no programa de assistência à gestão do setor energético no Banco Mundial. Ela afirma que há muitos tipos de incentivos e destaca as políticas associadas à emissão de carbono e à descarbonização da indústria.
“Hoje vemos que existe um gap do hidrogênio que emite CO2 para aquele que não emite, então se você precificar esse CO2, é possível reduzir a diferença”, afirma Hallack. “Não são regulações específicas de hidrogênio, mas beneficiam esse mercado
também, com a vantagem de incentivar outras tecnologias e subprodutos, como amônia e aço.”
O Carbon Border Adjustment Mechanism europeu é um exemplo deste tipo de incentivo. Ele prevê um ajuste na entrada dos produtos industrializados na UE, de modo que aqueles com baixa emissão sejam mais competitivos do que aqueles com alta emissão. Nos Estados Unidos, por outro lado, um dos benefícios previstos na Lei de Redução de Inflação (IRA, na sigla em inglês) é o crédito tributário de até US$ 3 para cada quilo de hidrogênio verde.
Na avaliação da advogada Fernanda Sá Freire, sócia da área de Energia e Tributário do escritório Machado Meyer, no Brasil, já existem medidas de desoneração de investimentos no setor de energia em PIS/Cofins que poderiam ser estendidas para as plantas de hidrogênio renovável. Ela avalia ainda que poderia ser replicado o modelo da Rota 2030 – programa destinado ao setor automotivo, com redução do Imposto de Renda, do Imposto de Importação e do Imposto de Produtos Industrializados (IPI) – ou da Lei de Informática.
Para Felipe Moura, da ABHAV, independentemente do desenho de regulação econômica escolhido, o importante é que as políticas de incentivo tenham início, meio e fim, de modo que possam fomentar o crescimento da indústria do hidrogênio verde, sem
onerar os consumidores finais.
Sem uma lei federal específica, o licenciamento ambiental no Brasil é regido por instrumentos infralegais, como resoluções e instruções normativas. Um exemplo é a resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) 237/1997, que dispõe sobre a revisão e complementação dos procedimentos e critérios utilizados para o licenciamento ambiental.
Com isso, o licenciamento de plantas de hidrogênio no Brasil é feito em esfera estadual – o Ibama somente opera em casos específicos, como aqueles que envolvam estruturas marítimas, o que poderia acontecer em projetos de hidrogênio cuja energia venha, no futuro, de eólicas offshore (no mar). O Ceará é o único Estado que tem uma resolução específica (Coema, no 3/2022) para o mercado de hidrogênio verde, enquanto outros Estados, como Bahia e Rio de Janeiro, colocam a atividade no hall
industrial.
“Com isso, o licenciamento ambiental tem fragilidades, porque é um processo muito técnico, e sem uma legislação específica, alguns aspectos se tornam subjetivos”, afirma Laiz Hérida, da HL Soluções Ambientais, que defende a atualização da resolução do Conama e a criação de uma lei geral. Hérida avalia, contudo, que o projeto de lei para licenciamento ambiental (no 2.159/2021) que pode ser votado a qualquer momento no Senado representa um “retrocesso”.
O texto, aprovado pela Câmara dos Deputados em 2021 com base no PL 3.729/04, tem pontos polêmicos. O principal deles é a dispensa de licenciamento para 13 tipos de empreendimentos que sejam enquadrados como “melhoramentos”. No fim de agosto, o Instituto Socioambiental (ISA) e o Observatório do Clima divulgaram uma nota técnica com propostas para reverter as ideias trazidas pelo PL.
Para Fernandes, professora da UFRJ, uma lei federal é importante na regulação do mercado de hidrogênio para evitar discrepâncias entre os Estados. “Empresas que desejam estabelecer plantas de hidrogênio em múltiplos Estados se beneficiariam de um conjunto claro e consistente de regras”, avalia.
Por Valor Econômico.
https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/10/13/ministerio-prepara-regulacao-para-ter-hidrogenio-verde-como-alternativa.ghtml